King Salomon e a engenharia
Aos 16 anos achei que o planeta Terra era demasiado apertado. Tentando solucionar o problema de espaço e de conforto, compus duas mochilas e decidi viver em Lisboa - "a" capital, provavelmente aquilo que, neste país, mais se assemelha à "Europa", conceito então abstracto.
Chegado a Lisboa, pensei que o planeta talvez até nem fosse assim tão apertado, apesar da falta de espaço nos transportes públicos. Sobrevivi um ano, dois meses e quatro dias, a viver em casa de um amigo meu que, entretanto, viera estudar para a faculdade para ser cursado com superioridade. Ele estudava engenharia de qualquer coisa. Eu não estudava nada, parei com isso de ser estudante. De início, os fins de tarde à porta do metro no Saldanha - com guitarra afinada, muito feeling e um gorro velhote dos LA Lakers (ainda dos tempos gloriosos do Magic) no chão, de boca aberta - davam para duas refeições por dia, café incluído. Foi então que comecei a fumar.
Duas consequências imediatas: com a mudança de voz e o novo vício, o falsete esfumou-se, levando a acentuadas quebras no RDB - rendimento diário bruto; por outro lado, e mesmo sendo Golden American (380$00 por 19 cigarros em pacote mole), a despesa acrescida em contraponto à quebra das receitas indiciava o início de um período de recessão. Tornava-se imperioso, urgente, iniciar a retoma.
Tornei-me paquete - a pé - num jornal diário da cidade. Ganhava pouco, mas o suficiente para aconchegar a carteira que, nesses dias, era mais solitária que eu: por esta altura, conheci a Patrícia. Decidimos formar uma banda, eu (guitarrista), ela (vocalista) e o meu amigo da engenharia (baterista). Faltava-nos um baixista. Arranjámos nome e tudo: King Salomon's Worst Thought. O nosso objectivo era fazer um som pesado mas bem elaborado - nessa altura eu não ligava muito à pureza do rock, à crueza e simplicidade dos três acordes em sequências de quintas atrás de sétimas atrás de quintas... por aí fora, até estabelecer um esquema circular. Preferia a sofisticação do progressivo.
Não chegámos sequer a ensaiar. O único instrumento que tínhamos era a minha Ibañez semi-acústica, com um jogo misturado de cordas nylon (as graves, bordoadas) com aço (as restantes). Mais tarde acabei por acrescentar uma de bronze, no ré - a de nylon partiu-se quando a Patrícia, durante a iniciação à guitarra, tocava, com desprezo e sobrepotência, os quatro acordes do "Rape Me".
Os King Salomon's Worst Thought ficaram pela "boa ideia". Cheguei a compor umas linhas melódicas e duas ou três letras, mas nem deu tempo para as mostrar: tudo se desfez quando, um dia, ao chegar mais cedo do jornal, encontrei a Patrícia e o futuro engenheiro a estudar qualquer coisa para uma cadeira do curso dele. Ainda hoje penso se ele não estudaria engenharia anatómica.