Apoteose no Convés
(continuação de Tour' 96)
Era sábado, parece-me. Devia ser, pois se já tínhamos actuado duas vezes e em dias seguidos e tenho quase a certeza, era capaz de apostar, que o dia seguinte foi domingo, dia de desmontar a tenda, arrumar a tralha, limpar os restos do sargo assado no braseiro e abandonar a lembrança do Alentejo, ali, no lugar de Porto Covo.
As duas anteriores performances não haviam sido completamente satisfatórias, nem para o público, nem para nós e, muito menos, para o gerente que se recusava terminantemente a pagar-nos fosse o que fosse - e que bem que me tinha sabido uma tequilla de oferta para acalmar os nervos e fazer esquecer a realidade.
O Convés estava cheio, à pinha. O bruááááá estendia-se porta fora, até ao centro do lugarejo, onde nós terminávamos, a custo, cachorros quentes mal servidos na Esplanada do Marquês - nessa altura ainda tinha, agora parece que já não tem.
Descemos as escadas do bar, apresentámo-nos à audiência, o bruáááá encolheu-se, primeiro, esfumou-se, em seguida, e levou consigo uns bons 80% da clientela até então presente. As duas primeiras noites não haviam agoirado nada de bom e a terceira preparava-se para encerrar a tournée fazendo o pleno: nem um aplauso sincero em mais de 4 horas de música (junatando as noites todas).
Começámos com o "My Mother Died (and I didn't care much)", mas a incompetência da dicção do Alfredo deu-me cabo da letra, que eu compusera tão a custo, após horas e horas de audições consecutivas de The Cure, Nirvana, Sex Pistols e Soundgarden. Seguiu-se aquele que havia de ter sido o nosso single, caso algum dia nos tornássemos uma banda: "Um Cão" - uma balada muito monótona, pesada, a roçar o sinistro, que contava a história de um cão chamado Vlad, o Impalador, que tinha nascido com três patas e teve um desgosto de amor e acabou por morrer atropelado antes de perder a virgindade. Uma tragédia em quatro quadras, escrita, de uma ponta a outra e com muito feeling, pela melhor das inspirações com que algum dia o Alfredo fora abençoado.
A audiência começava a dar sinais de vida, especialmente no refrão da canção, que dizia assim:
"eras um bom cão, embora Impalador, Vlad
que tenhas o mais que merecido descanso eterno
quem te atropelou e te causou dor de certeza que há-de
sofrer milhões de tormentas desumanas no Inferno"
(repetia 4 vezes)
Foi nesta altura que eu me iluminei: as coisas estavam a correr mal mas, mesmo assim, muito melhor do que das vezes anteriores. Esta poderia ser a grande oportunidade dos Smoking Gun After My Suicide. E eu não queria desperdiçá-la.
Reuni o pessoal da banda e fiz-lhes saber da minha intenção: queria-os fora do palco. A princípio todos aceitaram menos o Alfredo. Por fim o Alfredo acabou por aceitar a decisão, quando o gerente, que ouvia a nossa conversa, exultou e prometeu rodadas para a banda e acompanhantes, tudo a custo zero e a noite toda.
Subi ao palco sozinho e o público duvidava de mim. É natural. Nessa altura eu não era ninguém. Como é que eu ia fazer para ter na mão aquelas mais de quarenta pessoas? Como? Quais os acordes mais rápidos a quebrar o gelo? Quais as notas que mais depressa conseguem saciar multidões inquietas?
Peguei na guitarra, liguei o overdrive com uma distorção suja. Seleccionaie o ritmo B23 na caixa electrónica, aquele que faz tum-tum-TA-tum-tum-tum-TA-tum-tum-tum-TA (sempre assim).
Aumentei o volume da guitarra e deixei-a entrar em feedback. Já tinha a atenção das massas, que, expectantes, me olhavam, cada vez mais curiosas. Quando o feedback se preparava para ultrapassar a danger-line, comecei com os acordes de Smoke On The Water, num revivalismo Deep-purpliano que perdurará por décadas na memória daquela fantástica moldura humana e da vizinhança, que acabou por ser igualmente brindada com aquela sequência maravilhosa de acordes roucos e electrizantes. O povo aderiu, a malta cantava (não a música toda, mas a parte do "smoke on the water / a fire in the skies", embora eu fosse capaz de jurar que havia quem fizesse variações na parte do "a fire in the skies"), houve quem subisse ao palco e pegasse o microfone. Era a festa.
Para que se possa ter uma vaga ideia do que foi o encore: quando terminei (julguei eu...), agradeci ao público. Este respondeu-me com exigências e não com pedidos... "ok", pensei para comigo, "lá vai disto". Uma hora e três quartos depois, ainda eu tocava os mesmos acordes dos Purple... ainda hoje tenho marcas nos dedos. Mas acabei por sair em ombros. As rodadas à borla foram tantas, que tal se tornou inevitável...