Na curvinha acentuada do século, ali perto de onde acabava o Dezembro antigo e o Janeiro do segundo milénio já se adivinhava até pelo novo cheiro - oh, a modernidade das novas eras, essas datas redondas e inovadoras que fazem a Humanidade calendarizar-se na vertigem de um sonho novo, de uma esperança rejuvenescida, como se os homens ressuscitassem e rompessem uma casca de ovo estagnada no tempo - fiz parte de um dos mais curiosos e peculiares projectos musicais que conheci até hoje.
Provavelmente alimentados pela loucura que se espalhava um pouco por cada cabeça humana - cabeças que perspectivavam o vértice cronológico: 1999 iria tornar-se 2000; era apenas uma questão de tempo - também nós acreditávamos na renovação da realidade pós-moderna. Éramos apenas três-tão-somente-três e a maquinaria era escassa. Uma Fender Telecaster para mim, um Ernie Ball-qualquer-coisa-não-me-lembra-o-modelo-que-não-sou-baixista para o Mário e uma bateria Pearl muito "jazzie" para o Bruno, também conhecido por "Cámone" entre os frequentadores habituais do Nina's Place, ali nos arredores de Santa Iria da Azóia. Aliás, o Nina's Place foi o palco da nossa estreia, mas... lá chegaremos, que ainda agora começou a constituição da equipa.
Equipa essa que respondia, quando a multidão assim aclamava, pelo nome de Paquiderme Magrinho. Os Paquiderme Magrinho tinham um som ligeiro dentro do género pesado, indo de encontro à explicação latente no epíteto. Suponhamos que temos a voz do Manel Cruz (dos magníficos Ornatos Violeta), mas mais suave (era eu que cantava); imaginemos que tínhamos uma guitarra que encorpava influências tão díspares que atravessavam praticamente o universo musical contemporâneo, partindo de um Jerry Cantrell (Alice in Chains) e terminando num Mark Knopfler (mas com palheta), passando obviamente por um Pat Smear (sem cabelo pintado) cruzado com um Dave Mathews (não acústico) e outro Ben Harper (sem "lap guitar" nem truques de "slide"); tentemos conceber um baixista (o Mário) algures entre o Brian Ritchie (Violent Femmes) e o Colin Greenwood (Radiohead), com umas piscadelas de olho à Melissa auf der Maur de uma fase primária das Hole; a bateria do Cámone soava exactamente como aparentava: "jazzie".
Tudo isto, numa embalagem bem empacotada, trajada sem grande rigor mas com enorme boa vontade. E cantávamos em português, em composições que, por vezes, pareciam não fazer grande sentido. Há quem insista que não tínhamos métrica; há quem jure a pés juntos que nunca rimámos durante a nossa curta existência; mas temos, contudo, testemunhos praticamente válidos de que a nossa música tinha nível e a nossa onda era um ensinamento para as gerações vindouras: uma forma de estar muito "cool", em que a pacificidade e a tolerância pontificavam. É uma pena que nunca tenhamos tido o retorno merecido.
Ora, mas, às vezes, uma letra vale mais que mil palavras. Aqui ficam com "Nada Por Acabar". Tirem as vossas próprias conclusões.
"Nada Por Acabar (Guitarrista / Paquiderme Magrinho)
(intro - apenas bateria e voz)
círculo inexacto e pronto
a viver
balão de ar imperfeito
anestesiado
atado às minhas mãos
na ponta de um cordel
de amor rarefeito
escalada enlouquecida
ao monte de Vénus
na ponta dos dedos
mindinhos eternos
vivos de carne fantasma
nocturna e entristecida
como antigamente
(entram guitarra e baixo, a música ganha uma melodia cerrada mas suave, como uma sequência de potentes explosões secretas, quase silenciosas)
100% ou nada por acabar
como um destino incompetente
e tão fácil de cumprir
as mil razões aparentes
que nunca ninguém sabe explicar
e nada mais a seguir
somos todos ladrões
e a vida é uma ladra por agarrar
há sentimentos que escapam
e uma razão por perceber
pois 100% das coisas
são sempre outra coisa qualquer
(todos, em uníssono, gritando)
e nada mais p'ra descobrir (8 vezes)"
Chegámos a gravar um "single" com esta música. Supostamente, seria a rampa de lançamento para o LP "Marés Vivas em Terra, Gaivotas Submersas a Afogar-se", uma coisa muito lírica, a lembrar o pôr-do-sol de Outono na Foz do Lizandro, entre um gin tónico, dois dedos de conversa e o grasnar absurdo e enervante da passarada que a gente amaldiçoava, mas sem grande convicção. A editora rejeitou o título e nós, que éramos teimosos, preferimos cancelar a edição. Quem perdeu foi o público.