Por detrás dos sorrisinhos
Muito me intrigam aqueles amiguinhos que aqui tenho no blog. Calma. Não é de vocês que eu estou a falar. Refiro-me concretamente aos redondinhos sorridentes que fazem parte da mobília das caixas de comentários. De certeza que já reparam neles... Mais, se já comentaram, é seguro que já usaram alguns deles, pelo menos. Mas alguma vez pararam para pensar nesses bichinhos sempre tão disponíveis para nos traduzirem pensamentos e sentimentos quando o texto corrido não flui? Pois, não pensaram. Acreditem que, sem os bicharocos coloridos, seria muito maior a frequência com que vocês fariam má figura; os mal-entendidos haveriam de suceder-se em catadupa. Se tal não acontece, deve-se, seguramente, a estes pequenos e afáveis seres que tão egoisticamente ignoramos e tão prontamente utilizamos, fazendo uso da sua personalidade, expressa com simplicidade num sorriso ou em lágrimas. A pergunta impõe-se: quem são estes animais?
Comecemos pelo primeiro a contar da esquerda, aquele do chapelinho.
Tem ar de querubim, sem dúvida. Contudo, é seguramente sexuado. Diria mesmo que é fêmea. Tem ar de menina, muito tímida, púdica, um poço de reservas. Contudo, aquele olhar matreiro não esconde que também gosta que lhe dirijam um piropo, que a beijem de surpresa e com força, como nos filmes franceses, ou até, quando sai à noite com as amigas e já está um bocadinho tocada, que lhe ponham a mão no rabo, desde que ninguém veja. Fica nervosa só de pensar nisso. Na intimidade solta o animal que há em si. Perguntem ao dos óculos de sol.
Temos o segundo, aquele de sorriso de orelha a orelha. É macho e é do Benfica. Homem honesto, incapaz de mentir. Gosta de caracóis e de Xutos & Pontapés. Prefere Sagres a Super Bock, e faz muito bem, que eu também prefiro. Vai ao Rock in Rio - Lisbon edition (sejam "benvindos", diz Santana Lopes...). Não gosta de nenhuma banda em particular (para além dos Xutos), mas como o pai gostava de Beatles ele vai lá ver o Paul McCartney, que diz que toca muito bem. Enquanto cidadão quase exemplar, ostenta apenas uma falha: nunca se recenseou como eleitor. Não percebe nada de política nem gosta muito dessas coisas, decidir é complicado. Joga bowling no Colombo, todos os sábados à tarde, com a namorada, com quem mantém a mesma relação apática há seis anos e uns trocos.
Chegamos então ao terceiro, aquele envergonhadinho das faces eternamente rosadas. A cada dia que passa, mais o rapaz se avermelha. Oriundo não de uma família mas antes de uma floresta genealógica de campónios agrícolas da Beira Interior - tradição milenar à qual escaparam dois tios rebeldes que optaram pela pecuária -, o envergonhado redondinho não tem grande importância. Nascido humilde, é humilde e simples que morrerá, sem que exista qualquer tipo de expectativa em relação a eventuais evoluções ou progressos, tanto ao nível da personalidade como do estatuto social. Na escola nunca teve alcunha. Para falar verdade, ninguém reparava nele. Nem a professora. Para confirmar a tese, eis o facto: terminada a quarta classe, quando procurou o processo escolar para certificar habilitações de forma a dar início à actividade laboral (técnico de sulfato e "chófer" de tractor), descobriu que o seu nome nunca chegara sequer a figurar no livro de ponto. Não tinha faltas, portanto.
O quarto é o dos óculos, o preferido das mulheres. Tem pinta, um ar muito cool, embora se pareça um pouco com o Stevie Wonder. Não é romântico mas disfarça bem, o que leva a que as miúdas facilmente lhe caiam aos pés - muito embora ele não os tenha. Infelizmente, não pode sair à noite, porque não vê nada com aquelas lentes fumadas. Em contrapartida possui umas retinas em excelente estado de conservação. Está sempre de bem com a vida e é detentor de uma auto-estima elevada. Será, provavelmente, o mais másculo dos bonecos, se exceptuarmos o diabrete que está lá à frente - já lá vamos. O seu sonho era ser músico, mas a falta de dedos dificultou-lhe a tarefa e impossibilitou-lhe a concretização do sonho. Suspeita-se que mantém uma relação escaldante com a sonsinha do chapelinho. Perguntem ao dos olhos esbugalhados.
Chega o chorão. Ou será chorona? Eu acho que é menina. Quem chora assim não é homem. Qual carpideira, passou a maior parte da vida vertendo lágrimas insaciáveis num pranto de meter Dó - e é aqui que entra a música: em Dó. Junta-se ao côro da Igreja de Nossa Senhora das Dores (dah-uh...). A mãe, entretanto, faz questão que se torne freira. E ela não discute. Chora mas não discute, principalmente porque não consegue chorar e discutir em simultâneo. A mãe insiste mais ainda e, já que pode exigir, abre inscrição nas Carmelitas Descalças. Infelizmente, a chorona não pode alinhar pelo mesmo diapasão devido a um fungo esquisito chamado "pé de atleta", que contraiu em circunstâncias ainda por explicar na sacristia da sua paróquia. Fica a pergunta: como é que um smiley que só tem cabeça contrai pé de atleta? São misteriosos os desígnios do Senhor...
(continua)