Querida Guitarra
segunda-feira, junho 21, 2004
  Drogado


1. A visão comum romântica/conservadora do artista enquanto criador tende a associar o espírito criativo e o método de criação deste a uma certa névoa envolvente pejada de vícios e hábitos decadentes, a uma existência "alternativa" que foge à normalidade instalada e vista como correcta pela massa social. Esta ideia serve principalmente para as artes e artistas populares, mas não exclui a priori as criações e criadores eruditos. Pintores, poetas, dramaturgos, compositores clássicos são tantas vezes alvo deste tipo de associação de ideias como os pianistas de jazz ou os guitarristas de rock ou heavy-metal. Mas, neste caso, os eruditos que se defendam a eles próprios, que esta dama é a minha.

Antes de mais, gostaria de deixar bem explícito que não acredito que a genialidade de um criador ou artista se possa medir pela quantidade de vezes que tomou drogas duras ou pelo grau de excentricidade que faz (ou tenta fazer) transparecer para o mundo. O criador só o é enquanto cria e isso, o acto de criação, tanto pode surgir num atelier devidamente preparado para o ofício, sob o efeito de marijuana, como num autocarro na rotunda do Marquês, em hora de ponta, ao fim da tarde, inalando odores corporais de origens variadas.



A criação é um "clique". O que vem a seguir é trabalho artístico. Claro que existem excepções, especialmente se a intenção for conceptual. Mas, de um modo geral, é mais ou menos assim que funciona o processo; isto, partindo do princípio que o artista é honesto e acredita mesmo no seu trabalho.



2. Ainda eu não era propriamente um "guitarrista", já usava o cabelo comprido, as calças rotas e anéis. E já tinha a minha guitarra, embora ainda não soubesse muito bem até onde poderia chegar na exploração desse magnífico objecto. Ainda hoje estou longe, muito longe, do limite - penso e espero eu. Ou seja, eu não era um "guitarrista" mas já era o Guitarrista. Tinha a imagem e o espírito que ainda hoje conservo, se exceptuarmos o cabelo comprido, que entratento rapei, quando estava nas aero-transportadas e fui fazer uma comissão à Bósnia. (joke ah ah ah ah)

Certo dia, andava eu a magicar a essência daquilo que, meses mais tarde, viria a ser conhecido pelo mundo como os Fertilizante em Órbita (uma banda de punk-rock à moda da Califórnia, com laivos de psicadelismo e alguns acordes de bossa-nova com distorção, para dar brilho aos refrões e deixá-los menos quadrados), estava à espera do autocarro para ir ter com o (então-) futuro baixista da banda. A paragem era novinha em folha, fruto do esforço e dedicação do presidente da junta local. Eis que chega, entretanto, uma senhora de ar respeitável que teria, penso eu, idade para ser minha mãe. Olhou-me de alto a baixo, analizou o vestuário e associou este à guitarra que eu trazia às costas. Por fim, sentenciou, entre a incredulidade e a revolta, "não deviam construir estas coisas novas, todas arranjadinhas (ela falava da paragem, suponho...). Para quê?! Para estes drogados virem para aqui estragar isto tudo?!"

Obviamente, não lhe respondi. Sempre fui uma pessoa educada e parto do princípio que, se me mantiver sempre respeitoso, serei sempre respeitável - o que não significa que seja sempre respeitado. Sublinho que, em seguida, me levantei e dei o lugar à senhora. Não aceitou, tal como eu previa, mas eu também não voltei a sentar-me.



3. Sim, eu já fumei ganzas. Não muitas, nunca foi um hábito. Mas já fumei umas quantas, mais do que devia, em determinadas alturas. E sim, também gosto de tomar uns copos com os meus amigos - até já apanhei algumas bebedeiras, inclusivamente em dias de concertos (aos quais assisti, umas vezes, e nos quais participei, outras tantas...). Suponho, portanto, que, na perspectiva de pessoas como aquela que acima descrevi, eu seja um "drogado". Gostaria apenas de alinhar determinadas ideias para que essas pessoas não se percam ao classificarem terceiros.

Primeiro, "drogado" é um conceito vago. Um adolescente que experimenta uma ganza, embora seja "drogado", não é um "drogado" igual a um trintão apodrecido por anos e anos de injecções de "cavalo" (as pessoas respeitáveis dizem "heroína", os drogados chamam-lhe "castanha"). Portanto, vou deixar aqui uma lista que, durante este último trimestre, fui tentando elaborar cuidadosamente. É inspirada em duas formas de registo: a de Richter e a de Mercali. Portanto, se a primeira tem a ver com a intensidade de "drogado" que um indivíduo é, a segunda prende-se com a avaliação dos estragos produzidos pela droga no "drogado". Assim:



Escala A (Richter)

Grau 5:
-Caroxo: pessoa toxicodependente; consumidora habitual de drogas duras, com especial incidência (e até por razões orçamentais) no consumo de heroína;

Grau 4:
-Aventureiro: pessoa que consome habitualmente substâncias adulterantes do estado físico-espiritual; adepto da cocaína e das drogas sintéticas; potencial toxicodependente;

Grau 3:
-Maluco: pessoa adepta do consumo de drogas mas que, habitualmente, consome drogas leves (eu considero a marijuana e o haxixe uma droga leve); não corre o risco de tornar-se viciado no consumo de drogas;

Grau 2:
-Jovem: consumidor irregular de drogas leves;

Grau 1:
-Desistente: pessoa que, mesmo tendo experimentado drogas leves, não consome qualquer tipo de substância ilegal.

Escala B (Mercali)

Grau 5:
-Corpse: caroxo de longa duração; indivíduo moribundo;

Grau 4:
-Zombie: pessoa que já derreteu o cérebro devido ao consumo regular e de longa data de drogas de vários tipos;

Grau 3:
-Alheado: indivíduo que nem sempre se encontra ligado à realidade; os hábitos de consumo deixaram as suas marcas; denota alguma ansiedade diária, o que resulta provavelmente da vontade de experimentar "uma cena nova";

Grau 2:
-Mocado: pessoa pouco habituada a consumir drogas que acabou de fumar um berlaite; se não apagar com quebra de tensão, sentirá uma fome difícil de controlar dentro de mais ou menos uma hora;

Grau 1:
-Imune: pessoa que fumou alguns charros ao longo da vida mas que não apresenta quaisquer mazelas resultantes da prática.

Podemos acrescentar variações, obviamente. Por exemplo, entre os graus 4 e 5 da escala de Mercali, poderia existir o Mutante, algures pelo 4.5.

E pronto. Para quem quiser dizer mal dos jovens e dos artistas, espero ter-vos sido útil.
 
Comments: Enviar um comentário

<< Home
A música vista por dentro. A vida tocada em guitarradas ruidosas. Cuidado com o feedback.

A minha foto
Nome:
Localização: Lisboa, Portugal
Canta-me ao Ouvido
queridaguitarra@hotmail.com

Música da Boa
feromona
De Olhos Bem Fechados
Sítio do Cefalópode
Blog do Cefalópode
Bodyspace
Portugal Musical
Os Saudosos Anos 80
Mesa de Mistura
Plasticina
Fãs do José Cid
Vigilante
Batongoville
Dying Dream

Novas Cantigas
Restos & Sobras
Cavalo de Tróia
Nefriakai
Cidade Sem Lei
Outras Cantigas
Tasca da Cultura
Vareta Funda
O 2º Melhor Blog
Kathleen
Muito Minimalista
Trutas Amazing
Walking Cat
O Rei Mouro
Olho de Girino
Laurinha nos Degraus
Sol&Tude
Mini Sagres
Bilis Secreta
Guarda-factos
Pepe'r'us
Moleskine
Quinta Coluna
Lê-se o ilegal
Uma Por Rolo
Instar 40
Megafone
Mariah
Come Away With Me
Esplanar
E fez muitíssmo bem!
Sim, isto é o da Joana
Dunas são como divãs
Amiga Olga
Bola
Dianabol
Biqueirada
Tudo à Estalada
Cromos da Bola

Melodias Antigas
04/01/2004 - 05/01/2004 / 05/01/2004 - 06/01/2004 / 06/01/2004 - 07/01/2004 / 07/01/2004 - 08/01/2004 / 08/01/2004 - 09/01/2004 / 09/01/2004 - 10/01/2004 / 10/01/2004 - 11/01/2004 / 11/01/2004 - 12/01/2004 / 12/01/2004 - 01/01/2005 / 01/01/2005 - 02/01/2005 / 02/01/2005 - 03/01/2005 / 03/01/2005 - 04/01/2005 / 04/01/2005 - 05/01/2005 / 05/01/2005 - 06/01/2005 / 06/01/2005 - 07/01/2005 / 07/01/2005 - 08/01/2005 / 08/01/2005 - 09/01/2005 / 09/01/2005 - 10/01/2005 / 10/01/2005 - 11/01/2005 / 11/01/2005 - 12/01/2005 / 12/01/2005 - 01/01/2006 / 01/01/2006 - 02/01/2006 / 02/01/2006 - 03/01/2006 / 03/01/2006 - 04/01/2006 / 04/01/2006 - 05/01/2006 / 05/01/2006 - 06/01/2006 / 06/01/2006 - 07/01/2006 / 07/01/2006 - 08/01/2006 / 08/01/2006 - 09/01/2006 / 09/01/2006 - 10/01/2006 / 10/01/2006 - 11/01/2006 / 11/01/2006 - 12/01/2006 / 12/01/2006 - 01/01/2007 / 03/01/2007 - 04/01/2007 /

Querida Guitarra

Powered by Blogger