Toranja pouco sumarenta
Há uma banda portuguesa que vai fazendo furor por esses leitores de CD's fora, animando adolescentes incautos e adultos mais distraídos. Chamam-se Toranja e têm a tendência inexplicável de fazer colagens e reciclagens de vários artistas e suas composições. Sou capaz de reconhecer que o "génio criador" e mentor da banda, Tiago Bettencourt, tem os seus talentos: não só é óptimo no uso e abuso da técnica do decalque, como exerce, com especial aptidão, a regra da métrica dissimuladamente "a martelo". Além disto, possui uma voz belíssima e muito bem afinada. Confesso até que, a primeira vez que ouvi Toranja, tudo me soou agradável, embora demasiadamente familiar. Acredito mesmo que os músicos que constituem o agrupamento sejam dotados, técnica e intelectualmente. Mas não posso deixar de notar que isso não chega, especialmente quando uma banda se apresenta como inovadora - é, no mínimo, sintoma de pretensiosismo.
Este pretensiosismo revela-se inteiramente numa das faces do libreto que acompanha o CD. O álbum chama-se "Esquissos" e os Toranja, num gesto paternal, tratam de explicar o porquê: "...esquissos são rascunhos, são estudos sobre uma ideia. Esquissos porque nunca é um projecto acabado".
Caros Toranja: as músicas de Jorge Palma, Ornatos Violeta e Coldplay (só para citar alguns, porque haveria outros a assinalar) não precisam de "esquissos" vossos. Eles próprios já demonstraram capacidade criativa e, seguramente, hão de ter atravessado um pequeno deserto experimentalista até chegarem ao conceito desejado. Não compreendo, portanto, que "estudos sobre uma ideia" possam ser feitos por vós, considerando que "a ideia" não é vossa. Para quem achar que exagero, ouça a primeira faixa ("Carta", está sempre a passar nas rádios e na TV) do álbum - é Jorge Palma chapado, só que com menos imaginação e uma letra muito mais fraquinha. Para quem, mesmo depois desta audição, considere as parecenças na composição um mero acidente, ouça o álbum de uma ponta à outra. Amesquinhando, existe mesmo um momento numa das faixas (julgo que é a 6, mas não garanto, porque já saí da Fnac e não trouxe o CD...) em que o Tiago Bettencourt chega ao ponto de executar um falsete num encadeamento de notas em todo igual ao que Chris Martin consegue na 3ª faixa ("Spies") do álbum "Parachutes", dos Coldplay.
Mas não é apenas no decalque e no cliché que os Toranja erram. Se prestarmos alguma atenção às letras, constataremos facilmente que este é mais um ponto fraco da banda. No entanto, e como já disse, Tiago Bettencourt tem o mérito (grande) de fazer parecer, a uma primeira audição, que as suas letras são de qualidade insuspeita, repletas de malabarismos linguístico-conceptuais e cheias de significados existencialistas, numa perspectiva quotidiana. E uma coisa é certa: a métrica ele domina. Mas, mais uma vez, não chega. Exemplos?
"E todo o teu planeamento estratégico de sincronização do coração são leis
como paredes e tectos cujos vidros vais pisando"
(Carta)
Quais vidros, Tiago?
"Ainda magoas alguém
o tiro passou-me ao lado
ainda magoas alguém
se não te deste a ninguém magoaste alguém
a mim...
passou-me ao lado"
(Carta)
Depois daquele discurso todo, Tiago, passou-te ao lado?
"Foi fogo que nos encontrou sozinhos queimou a noite em volta
presos entre chama à solta
presos feitos para soltar
estava escrito..."
(Fogo e Noite)
De facto, não era bem assim, mas já estava escrito.
"Noite é querer
é poder
é disfarce
é deixar para trás e largar
escuro é esconder
é guardar
é um livro esquecido e papel para escrever
há uma janela no rio
há um monte a tapar
há vento que entra.. frio...
e tu a olhar
mais uma carta rendida
mais um cenário que manda dançar
mais uma noite perdida"
(Cenário - janela no rio)
Hum...
"Talvez um dia assim
talvez um sonho a mais
talvez pensar andar
talvez pense acordar
já te perdias, foi mais um dia assim"
(Já te perdias)
Pobre. Muito pobre. Eu podia continuar. Mas, para ser sincero, estou um bocado cansado e acho que já dei exemplos de sobra. Para terminar, acrescento que tenho muita pena de ter ficado desiludido com os Toranja. A sério que depositei esperanças neles - ao ponto de me dispor a ouvi-los com atenção... se calhar foi esse o meu erro.