Em memória de Glória (1972-2004)
Acordava obsceno, a meio da noite, e assinava-te as coxas descobertas. Primeiro com paus de giz, como se pintasse, tocando-te a pele com timidez infantil, tacteando e descobrindo. Depois, com marcadores de tinta da china, com os quais te preenchia o tecido moreno, contornando-te as formas com sabedoria e intenção. Por fim, usando as lâminas reluzentes que temias, decalcando o meu nome para lá da pele, violentando-te a carne, chegando mais fundo que a mera superfície do teu objecto, da tua memória, assinalando o meu território com golpes de conquistador, plenos de desejo e bravura e posse. E choraste e imploraste que parasse e eu, que não parei, que sabia o que fazia, não estremeci, sequer.
A minha assinatura saiu tão limpa quanto o teu sangue permitiu. A caligrafia perfeita de uma mão convicta, transparecendo uma ideologia sem falibilidade possível. Soberba como os teus próprios traços. As linhas de cada letra como cada curva do teu corpo, em vincos fundidos numa dança felina, arrepiada, estreita. Tango fluindo pelas paredes do quarto, sentiste-o no estômago e eu em cada poro, em cada detalhe de cada pequena letra plena, elegante, sangrada.
E os lençóis, essa lama de suor vermelho vivo, quase pulsavam sob a contorção contrariada do teu corpo. Gemias outra e outra vez, repetias-te extasiada e eu sei que era prazer, mesmo quando me amaldiçoavas e enchias a boca de ódio e de ira, ameaçando-me, fazendo desenhos desavergonhados com os lábios carnudos enquanto gritavas e os pulmões quase te explodiam. A vibração era incandescente sempre que as cordas vocais se te incendiavam de pânico, de gozo e de dor. Eu era o teu servo.