Palavras de sabedoria
O meu avô, que era um homem vivido, experiente, sabedor e que assentava boa parte da sua comunicação em estranhos e, por vezes, ininteligíveis aforismos, desde muito cedo me disse: "Guitarrista, se alguma dia, daqui a muito, muito tempo, vierem a existir computadores portáteis e tu, por artimanha do acaso, vieres a ter um, guarda-o sempre em cima do frigorífico. Nunca te esqueças disto!"
Nesses tempos, bem idos e mal lembrados, que se tornam bassos na distância entre o dia exacto que passou e a memória que me resta, o meu conceito de frigorífico era precário: aquela coisa clara, grande e gorda, a dizer Vauxhall ou parecido, com uma alavanca de puxar, encostado à parede da cozinha dos meus pais, de frente para a mesa de mármore, onde a minha mãe e a minha avó desossavam os patos, limpavam os pargos e despiam a farta farda peluda aos coelhos, preparando os jantares das datas importantes do calendário católico.
Nesses tempos sobre os quais fui, sem intenção, derramando a areia do esquecimento e assim obscurecendo os detalhes que lhe pertenciam e que o faziam tão único e tão diferente, eu não tinha noção, em absoluto, do que era um computador, fosse ele portátil, encastrado, imóvel com fundações, de arrumar no cimo do frigorífico, debaixo da cama ou dentro do forno: não fazia a mais microbiológica ideia do que seria tal objecto.
Mas como o caos governa o mundo e distribui a ordem pelas coisas do universo, organizando energias sob o véu da anarquia - que não é! -, há uns tempos atrás, anos e anos após o tritse enterro do meu avô, meia-dúzia de pessoas próximas e distraídas, num baldio mal amanhado para os lados de Caneças - quando ainda lá não havia casas, senão as de lavadeiras e tocadores de gado - (nem uma coroa de flores....), eu comprei um computador portátil. O meu avô havia de rejubilar, não por mim, mas pela sua previsão certeira.
Ontem, arrombaram-me a porta, revolveram-me a casa e levaram-me alguns bens. Deixaram-me as guitarras e os CD's, mas levaram-me o hi-fi, uns sacos de viagem, um disc-man, um relógio e o computador portátil. Ainda procuraram ouro e dinheiro, sei-o porque me remexeram todas as gavetas, o que acabou por conferir à minha casa um aspecto impensavelmente mais caótico do que o habitual.
Quando entrei em casa, apeteceu-me chorar. As minhas coisas, para mim sagradas, mexidas, violadas por um estranho de más intenções, que pode voltar quando quiser. No meio dos pensamentos que me atormentavam, lembrei-me do meu avô. Percebi finalmente o que quisera dizer-me com o aforismo do computador portátil: nunca ninguém procura nada em cima do figorífico. Nunca. Aliás, a maior parte das coisas que nos desaparecem, dentro de casa, acabam por surgir em cima do frigorífico: facturas, relógios, óculos, canetas, apontamentos, despertadores, colheres de pau, um pouco de tudo já regressou ao meu mundo, passando precisamente pelo topo do frigorífico.
Estou seguro de que, se, em vez de ter deixado o computador na secretária do escritório, que é o seu sítio - embora ele seja portátil e não tenha proprimante um "sítio" -, eu o tivesse pousado sobre o frigorífico, ninguém o teria encontrado. E, hoje, eu teria todo o meu trabalho convenientemente armazenado, em vez de estar louco, à procura de "back-up's" em ficheiros que enviei para amigos meus, CD's regravados ou discos amovíveis. Portanto, já sabem: se algum dia, por artimanha do acaso, vierem a ter um computador portátil, guardem-no sempre em cima do frigorífico. Nunca se esqueçam disto!