As fases do Guitarrista
Da cubista de Picasso à psicadélica de Roger Waters, da post-mortem de Dino Meira à hindú de John Lennon, passando pela islâmica de Yusuf Islam (conhecido como Cat Stevens, numa fase anterior), todo o artista tem a sua fase criativa. E eu atravesso uma especial: a fase 7-Up.
Pode soar estranho, talvez. Mas não é. Como Guitarrista Famoso sempre me distingui por uma capacidade especial: a de curar as ressacas. Sim, confesso, eu também ressaco.
Houve tempos, era eu imberbe, quando me alimentava de MTV, lia Mad's e considerava que "mais de três acordes numa música é um desperdício" - no entanto, e apesar da tenra idade, ressacava com alguma frequência - era um especial adepto da cura Coca-Cola. Para quem não sabe, consistia no seguinte: levantar-me da cama, prevenir a quebra de tensão inclinando a cabeça para a frente, caminhar lentamente até à cozinha, abrir o frigorífico, tirar a garrafa de Coca-Cola e beber "a olho". Repetir até o estômago - vazio, necessariamente (isto é importante) - suportar.
Durante a fase Coca-Cola produzi alarvemente. Falamos de qualquer coisa na oderm dos 150 temas. Todos eles muito mauzinhos. Mas ainda escrevi algumas boas letras. Entretanto, anos mais tarde, viria a aprender algo que muito jeito me deu: dá para tocar guitarra sem ter que fazer "power chords". Há mesmo outras formas, acreditem.
Numa segunda fase da minha criação, dediquei-me ao Sumol de laranja, também conhecido por "smólaranja", dependendo da intensidade da ressaca e da secura de lábios e língua. A terapia "smólaranja" funciona assim: sete da manhã, retirar os óculos de sol da cabeça, colocá-los nos olhos, avançar tropegamente até ao sanck-bar-pastelaria mais próximo e pedir, com bons modos "um smólaranja... bom dia. De lata". Beber rapidamente, pagar e ir dormir. No dia seguinte, caso os vestígios da ressaca subsistam, repetir o processo. Nunca fazer isto com smólaranja guardado em casa em garrafas de litro e meio: uma vez aberta a garrafa, perde gás e vai-se o efeito. Em certos casos, fica tão adocicado que causa o efeito inverso. No limite, provoca o enjoo.
A fase smólaranja foi importantíssima para mim. Delineei os meus objectivos enquanto músico, descobri o que é uma síncopa, aprendi a afinar pelos harmónicos e, mais importante, comecei a compor em português. Foi um bocado experimentalista, houve muitos erros. Foi uma espécie de travessia do deserto, busca e descoberta do meu "eu" interior e essas cenas. Sobraram três pérolas: "Homicide" (ainda em inglês) "Papagaio Absurdo" e "Crua Madalena". Ainda hoje fazem parte do alinhamento.
Eis que, após a desintoxicação do smólaranja, me julgo limpo. Erro meu. Este verão a ressaca voltou a atacar em força. Com as ressacas surgiu, inevitavelmente, uma prolífica fase criativa. O método 7-up ("sévénép") implantou-se e tem gerado bons resultados. A preferência terapêutica volta a recair sobre o consumo em estabelecimento aberto ao público, por oposição à ingestão em domicílio próprio. Contudo, o horário mudou. Hoje, levanto-me pelas três, quatro da tarde, ponho os óculos de sol (p'ra chorar... huuuu-huuuu... sem ninguém ver...) e dirijo-me ao sôr Manel, onde bebo uma sévénép de lata, em copo alto, com gelo e limão.
Posso afiançar que resulta. A minha produção criativa em português tem superado as minhas mais optimistas expectativas. Sou, neste momento, um compositor de gabarito. Como aliás podeis atestar pelas esmolas que vos deixo de quando em vez. Agora, vou ao sôr Manel.