Saudades tuas
Sim, falta qualquer coisa lá em casa. À noite, quando chego tarde do estúdio; à tarde, quando acordo; de manhã, quando não tenho ninguém a quem me abraçar durante o sono. A cama ficou muito maior do que eu desejaria. Para mim um berço chegava, se não tenho mais com que encher o enclave senão o meu corpo.
Existem hábitos que se colam às paredes. O cheiro pós-duche matinal - essa primavera inundadora do sono; o frenesim pós-duche, enquanto durmo e tu vasculhas os armários, em busca de peças de roupa que vestirás e que só verei horas depois; aquele teu deslizar miudinho sobre a cama, sobre o meu corpo, até que me beijas, em tom de "até logo", e eu, ensonado, resmungo "o que é que foi"; cozinhar para ti, mesmo que não aprecies - mea culpa, talvez... -, arrumar a casa a meias, ordenar o que é meu antes que lhe chegues a mão e me (des)arrumes as coisas dessa maneira tenebrosa que as mulheres têm de organizar tudo; observar-te, sentada na cama, a ler uma imbecilidade qualquer e a gostar de ti assim, sentir uma espécie de sorriso na barriga só por te ver ali; acordar sobressaltado ao sábado, fora de horas, porque me exiges que te vá comprar um gelado...
Existem estranhas reacções perante a solidão: escrever poemas insípidos, cheios de clichés pobres, e achar que estamos inspirados; revisitar as transcrições secretas daqueles "sms" que faziam tanto sentido; procurar fotografias queridas no meio das - oh, não!, arrumaste-me as prateleiras das fotos!!!... - ...e não as encontrar (e isto é coisa que provoca frustração); olhar insistentemente para o telefone, à espera que alguém ligue (e tu não ligas); concluir que os telefones não se deixam hipnotizar com facilidade; deixar-mo-nos cair sobre a cama, fingir que nunca deixaste de lá estar; permanecer até que o sono nos ampare; desistir, porque o sono não vem e tu me atormentas, aceitando que sim, de facto tenho saudades desse tempo.
Uma coisa que acontece com frequência é o surgimento de uma tentação: ouvir música lamechas. É preciso não ceder, mesmo que a vizinha ligue o RCP no momento em que os Scorpions entoam despudoradamente o "Still Lovin' You". Não. Mesmo nessas alturas resisto ao facilitismo. Normalmente, ligo o hi-fi e atiro o Jorge Palma lá para dentro...
" Quando a janela se fecha e se transforma num ovo
Ou se desfaz em estilhaços de céu azul e magenta
E o meu olhar tem razões que o coração não frequenta
Por favor diz-me quem és tu, de novo?
Quando o teu cheiro me leva às esquinas do vislumbre
E toda a verdade em ti é coisa incerta e tão vasta
Quem sou eu para negar que a tua presença me arrasta?
Quem és tu, na imensidão do deslumbre?
As redes são passageiras, as arquitecturas da fuga
De toda a água que corre, de todo o vento que passa
Quando uma teia se rasga ergo à lua a minha taça
E vejo nascer no espelho mais uma ruga
Quando o tecto se escancara e se confunde com a lua
A apontar-me o caminho melhor do que qualquer estrela
Ninguém me faz duvidar que foste sempre a mais bela
Por favor, diz-me que és alguém, de novo?
Quando a janela se fecha e se transforma num ovo
Ou se desfaz em estilhaços de céu azul e magenta
E o meu olhar tem razões que o coração não frequenta
Por favor diz-me quem és tu, de novo?"
Depois lembro-me de ti... e sinto ainda mais saudades tuas.