Querida Guitarra
segunda-feira, novembro 15, 2004
  A maldição do balcão


Fui ver um concerto de uns amigos meus - os Crematorium of Handicapped Corpses - que ainda continuam a insistir que querem ter uma banda e ser famosos e isso. É pessoal que adora tocar, sentir o feeling, espremer os instrumentos, arrancar grunhidos das entranhas, analisar a raiz do paranormal e explicá-lo aos mortais comuns. Têm boa onda. O que é que também têm é más letras. Porque a cena da boa onda deles é assim muito negativa. Isto parece confuso, mas não é: eles tocam death-sinistre-speed-metal. As músicas até se aguentam mas, no fundo, não passam de uma espécie de reciclagem de outra banda que eles tinham aqui há uns anos atrás, os Ironic Contusion in the Neck of my Beautiful Bride (ICNBB). Só que os Crematorium of Handicapped Corpses são claramente mais maduros.

O bar era manhoso, confesso. O nome não enganava: Forca Maldita. Por acaso o nome até me deixou a pensar: o conceito de "forca" não encerrará em si mesmo um certo travo a maldição? Não no sentido literal de "maldição", mas por oposição a esta ideia: duvido que haja forcas "benditas". Mas isto era só eu a pensar... O sítio era obviamente escuro e as pessoas tinham todas rostos obviamente claros, quase translúcidos - se exceptuarmos os lábios, que situavam a sua coloração entre o castanho putrefacto e o vermelho sanguinário, e os olhos, invariavelmente circundados por algo difícil de caracterizar, uma espécie de auréola negrumeira, nascida algures entre a sobrenatural evocação de um espírito mal-disposto e a consequência mínima da violência doméstica bem direccionada. Ou então noites mal dormidas, o que se compreende porque isto é gente que não curte apanhar sol.

Tentando passar despercebido no meio de uma multidão escurecida, decidi situar-me junto ao balcão. Apesar de tudo, estas coisas da decoração romântica, evocativas de um misticismo requintado, próprio dos séculos XVIII e XIX - o culto do escuro, a Lua, os lobos, a Morte, os ciprestes, as corujas, os crucifixos... - têm o seu quê de belo. O balcão estendia-se como uma belíssima sepultura ornamentada com elementos góticos. As gárgulas proliferavam por sobre o tampo. A imprerial saída da boca de uma delas... enfim. Mas tudo muito asseado. Só havia uma pequena estatueta, junto a uma magnífica gárgula, que achei perfeitamente dispensável: um gato preto. Pareceu-me um simbolismo primário, muito halloweenesco. Contudo, vim mais tarde a saber que tinha uma função, não era meramente decorativo...

Não passei despercebido. Talvez por falta de cautela e consequente programação, errei escandalosamente na escolha da roupa: Levi's rotas nos joelhos; gorro verde-alface, a tapar as orelhas; barba de 3 dias; camisa de pescador, aos quadrados vermelhos e azuis e um casaco de lã, castanho, daqueles que chega quase até aos joelhos e que as mangas têm mais um palmo que os meus braços, uma cena muito grunge, muito cool. Claro que destoou do breu cabedalizado e justinho global. Olhavam-me de esguelha, não sei se com desdém, se cumprimentando-me intimamente, tipo "man, como eu te compreendo, nem sabes como as minhas virilhas estão assadas e ainda só estou assim vestido há hora e meia".

Prostrado e contrariado junto à estatueta do gato preto, deparei-me com a beldade da noite: pele branca... ok, não era muito original ali no meio..., nariz afiado, lábios desenhados e pintados com a cor da luxúria, dentes branquíssimos. Os caninos não eram especialmente afiados, como cheguei a temer ao início. Os cabelos claros, escorrendo sobre as costas com peso e elegância. Olhou-me nos olhos e pediu-me, delicadamente, "pedes-me aí um panaché?". "Claro", respondi eu. Pedi e o barman, do alto do seu metro e noventa e muito, cabelos pretos, lisos, até à cintura, olhos permanente e habilidosamente revirados, trouxe-me a bebida. "Não é para mim, é para ela", disse eu. "Ela quem?", perguntou o barman com voz profunda. "Ela", apontei eu para a rapriga ao lado da estatueta do gato. "Ah, não me digas que Kitty já aí está!" exclamou. Não percebi. O barman saiu e foi então que a rapariga, Kitty de seu nome, me explicou que se tratava de uma maldição...



"Há muito, muito tempo" começou ela "o meu bisavô tinha uma taberna, lá na aldeia dele. E ele tinha muito mau feitio: não deixava que ninguém passasse para dentro do balcão. Com o seu aspecto forte e robusto, assustava os clientes que se aproximassem. Chegava a ameaçá-los com uma foice que guardava, junto à cixa das moedas. Ele era muito desconfiado e não gostava que se aproximassem do seu espaço. No fundo era muito territorial." A história de Kitty interessava-me. "Os homens da terra já sabiam o quanto ele odiava que se chegassem ao balcão e, como o temiam, não se atreviam a contrariá-lo. Mas houve um dia em que entraram na taberna cinco homens, já bebidos. Vinham do campo, do trabalho duro, queriam mais um copito. O meu bisavô, ao vê-los chegar naquele estado embriagado, anunciou, logo que entraram: 'vocês já beberam o que havia para ser bebido! Aqui não beberão, nem mais um copo 3!' Mas os homens insistiram. Um deles, aproveitando uma distracção do meu bisavô, que tentava convencer os restantes quatro a abandonar o estabelecimento, entrou no balcão e apanhou um garrafão de vinho. O meu bisavô, virou-se de repente, pegou na foice e cortou-lhe o pescoço". "Oh... a sério? Chiça...", exclamei eu impressionado. "Fónix!", acrescentei, expressivo, acompanhando a interjeição com um abanar intenso da mão direita e um esgar de terror. Kitty prosseguiu. "Quando veio a polícia, o meu bisavô explicou que não tinha visto o homem porque 'não via ninguém do balcão para dentro: aquele era o seu sítio'. A polícia não o prendeu. Mas um dos homens que acompanhava o decepado jurou-lhe vingança! E cumpriu. Lançou uma maldição à descendência do meu bisavô: uma pessoa em cada geração seria invisível sempre que se chegasse a um balcão de um estabelecimento!... e eu sou a infeliz herdeira da 3ª geração descendente."

Que maldição estranha. Kitty explicou-me depois que, para ser atendida ao balcão da Forca Maldita, tinha que fazer uso da estatueta do gato. "Faço-lhe uma festinha na cabeça e ele mia". É verdade, vi com os meus próprios olhos e ouvi com os meus ouvidos que a terra há-de encher: a estatueta miava quando a Kitty a acariciava. "Depois, o Vlad, que é o barman, vem cá fora do balcão para me conseguir ver, e pergunta-me o que eu quero". Cool. Estratégia engenhosa! Raio da miúda... "Normalmente bebo um panaché".
 
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