Verão 2002 (para o meu Irmão)
Já era de noite - o velhíssimo autocarro demorara eternidade e um quarto desde o apeadeiro ferroviário da Funcheira até à Herdade que nos esperava.
Não.
A Herdade não nos esperava. Fui eu a fantasiar - como se o corpo biológico de um indivíduo fizesse diferença alguma perante um recinto formatado para receber uma massa gigantesca de seres humanos desorientados, em busca de alienação e fuga temporária, no modo espiritual da coisa. Às vezes no modo físico, mas isso eram só os sortudos.
Não. Nós é que ansiávamos pela chegada à Herdade.
Chegámos. Era de noite, portanto.
Não montámos uma tenda. Pelo contrário. No meio de pinheiros caóticos e absurdas construções de tecido inflamável, com gente a arder lá dentro, erigimos um monumento irrisório ao deus Toni-Fóny. Precisamente sobre a raiz saliente de um pinheiro obstinado que, no seu jeito teimoso, decidira distender o seu alcance corpório por debaixo das nossas camas improvisadas. Dormimos mal. Felizmente, dormimos pouco. Em compensação, bebemos muito. E conhecemos muita gente. Ouvimos muita música, dançámos, rimos, comemos pouco. Eu cortei as unhas das mãos numa praia magnífica e cheia - tudo tem o seu lugar e cada coisa tem a sua utilidade. Tomámos poucos banhos mas fomos mesmo felizes.
As guitarras que ouvimos não as guardámos na memória auditiva mortal que temos do mundo. Foram coisas consumidas pelo tutano espiritual que transportávamos noctivagamente, de um lado para outro lado qualquer, a horas aleatórias de dias ao acaso, nem que essas horas fosses as últimas ou as inexistentes. E hoje nada disso existe, porque comemos isso tudo com a fome que tínhamos de estar juntos e de despir assim a existência, até à queimadura na retina emocional de cada um.
Era a Terra do Nunca, mas do avesso.