Querida Guitarra
quarta-feira, janeiro 19, 2005
  António & Variações humanas
Crítica de música



1. Primeiro, António. Já várias pessoas tentaram não defini-lo. Começam por dizer que é difícil, que é esquisito, que foi um cometa, que era estranho, que era ávant-garde, que era popular, que era fora de cena, que era fora-de-série. Depois de feita a amálgama, terminam com o clássico "era indefinível".
Pois atrever-me-ei a defini-lo. Não definindo o conceito "António Variações", mas antes exemplificando a forma como as suas letras e músicas se apropriam de quem as escuta. A linguagem simples e popular, plena de candura e ingenuidade, é usada por António com uma força assinalável: não se lhe pode fugir e não se a pode contornar.
É como se, num dia de profunda melancolia, e depois de ler conselhos psico-emocionais do Daniel Sampaio, memórias de guerra do Lobo Antunes e a Origem da Tragédia do Nietzsche, ao fim da tarde, de frente para uma imperial e um pires de tremoços, um amigo de infância, que desistira de estudar - por falta de vocação e dedicação - no 9º ano, se aproximasse, dando uma palmada nas costas e perguntando "então, pá? Há dias que moem mais que os outros, não é?" É. É isso mesmo! E, perante esta capacidade de percepção e este poder de síntese, todos os eruditos nos parecem apenas mestres da verborreia.
António diz verdades sobre sentimentos com palavras simples. Fala do quotidiano que conhece, com palavras que conhece. E conhece tão bem esse quotidiano, da vidinha aos sonhos, da alegria à tragédia, que as suas frases são valiosas. E, sendo simples, dizem muita coisa. Diria que é dos letristas com maior taxa de aproveitamento por vocábulo entoado.

2. Os Humanos. De uma forma geral, estes Humanos são uma agradável surpresa. Camané é o homem certo no lugar certo. Tem na voz o pedaço de fado que faltava a António Variações. O sentimento é semelhante. E, como sabe captar o arrojo e o tom popular do cantor original, Camané assume na perfeição as canções de António. Ou seja, e para que não restem dúvidas, não só deixa as músicas intactas, como a sua capacidade de interpretação dá um certo toque de requinte - sem cair em perfeccionismo, que seria contra-natura, no caso - às canções.
Manuela Azevedo confirma, uma vez mais, a sua voz de extraordinário timbre. Afinada, madura, aveludada, com uma rouquidão sensual, Manuela interpreta ainda na perfeição o sentimento original das composições. É muito fácil imaginar as músicas cantadas por Manuela Azevedo na voz de António Variações.
Chegamos a David Fonseca. É o mais fraco dos três intérpretes. Esforçado mas descontextualizado, não arruina a obra original, mas também não lhe dá nem a força nem a melodia que esta mereceria. Certamente, tal não acontece por falta de talento ou desatino na voz. Talvez o resultado se deva à falta de familiaridade com o canto em português. E se António Variações dominava a expressão lusa cantada com uma facilidade notável, indo à raiz popular, à música tradicional, David Fonseca parece que só agora experimentou a língua de Alberto João Jardim (sem pronúncia) para cantarolar. Devia experimentar tocar numa tuna. Ajudava-o a perder aquele ar tímido e a odiar pandeiretas. Além disso, cantar A Mulher Gorda ajudaria a uma maior aproximação à fonética portuguesa.

3. Avaliação final: Humanos 7/10. É um 7 mais próximo do 8 do que do 6. Vale pelo esforço, pela ideia, pelos arranjos - muito bons, mantendo-se fiéis à simplicidade de Variações - e pelas interpretações de boa parte das faixas. Não é um álbum estrondoso, não é "a peça que faltava". Mas é um acrescento, uma aproximação ao cantor português que conseguiu ser o mais português dos pop's, ao mesmo tempo que foi o menos português dos tradicionais. Este Humanos é um objecto claramente positivo. Além disso, é sempre agradável ter acesso a mais variações sobre António, em tons de novidade, 20 anos depois de a sua criação ter cessado.
 
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