Querida Guitarra
segunda-feira, janeiro 17, 2005
  A minha terra
Eu não tenho propriamente uma terra. Mas existe um sítio - e existe um para cada um de nós - a que chamamos "a minha terra". Normalmente, é o sítio onde enterramos "os nossos mortos" - a família, os amigos, aquelas pessoas que fazem parte da nossa existência de uma maneira tal que a própria existência que gerimos se transtorna quando uma dessas pessoas desaparece.

Eu vim hoje da "minha terra". Cheguei à cidade - que também vai sendo "minha", com o passar rápido dos anos - e senti-me carregado de renovadas energias. E essa renovação deve-se, eu sei, à quantidade de coisas que uma pessoa é levada a sentir e a pensar quando, num regresso de filho pródigo, volta a pisar a terra com que, há muitos, muitos anos, sujava os joelhos e as mãos, enquanto jogava ao berlinde. Ainda não havia playstation's e mesmo os game-boy's ou primeiras nintendo's eram raridades - eu tinha um EuroXT da Schneider com monitor Hércules monocromático. Nenhum amigo meu tinha uma máquina superior à minha - ainda toda a gente descobria as maravilhas da fita magnética gemedora no leitor/gravador dos 128k + 2, na altura.

Na "minha terra" as pessoas recebem-me com uma atitude difícil de definir. Sem dúvida, existe a gentileza e a amizade que se emprestam apenas a quem "é da casa". Mas, por outro lado, existe uma insuperável distância entre "os da terra" e os que, como eu, "de vez em quando vão à terra, comer comida da mamã e visitar o povo". Às vezes dá a sensação de que, os que ficaram, sentem que a partida dos outros foi uma espécie de abandono. E há um ressentimento latente: talvez resulte da quantidade de vivências que se acumulam em separado, em paralelo, quando, até certa altura, a experimentção do mundo se fazia numa comunidade que se adivinhava para toda a vida. Há aquela impressão de que o mundo nos separou e, com isso, destrinçou vidas que se previam e se queriam juntas.

E existe também o lado mais difícil de ir à "minha terra": a actualização do obituário. Gente que julgava distante, pessoas a quem nunca prestei grande atenção, morrem. E, de repente, de modo surpreendente, abre-se uma brecha na minha consciência: a minha terra, sem a pessoa tal, já não é a mesma. Alguém quebrou o contrato. Supostamente, a tal pessoa era "parte integrante e património inalienável" do conceito "minha terra". Se os mortos se acumulam, o que restará da minha ideia de "minha terra"? E é mesmo lá na terra que o obituário consegue ser mais cruel. Porque, quando contávamos que, mesmo com o passar dos tempos, lá na terra tudo se manteria, afinal a nossa terra vai-se reciclando.

E lá o tempo também passa e, mesmo lá, nós também somos e ficamos mais velhos - uma amiga minha, que é um ano mais velha do que eu, disse-me este fim-de-semana que tinha a impressão de que eu teria 18 anos. Andámos na escola juntos e, no entanto, eu, para ela, teria estagnado na idade em que deixámos de contactar. Comigo acontece-me exactamente o mesmo quando vejo os "miúdos", que o eram quando saí da terra, conduzindo o carrinho de bebé do filho ou com a namorada grávida pela mão. Os "miúdos"... não era suposto terem-se conservado "miúdos"?

Eu gosto de ir à "minha terra". Rever os rostos e percebê-los em mudança. Gosto da "terra" em si. Como ela lateja, agora que cresceu de repente e sem me avisar... Há muita vida ali. E, mesmo mais crescida e um pouco desordenada, conserva-se bonita. Eu gosto que as pessoas se lembrem de mim quando eu vou à minha terra. De quem eu sou e de como eu era.
 
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