Surdez
Numa perspectiva empírica, a surdez faz supor a inexistência de um universo sonoro. Tudo em redor se move em silêncio. Tudo nasce, existe, respira e morre num sepúlcro sem barulho ou melodia. O que resta a um músico quando a surdez o afecta?
A vedade é que estou a ficar surdo. Há alguns anos atrás, deixei de ouvir do ouvido direito. Há pouco mais de uma semana, o esquerdo deixou também de cumprir a função. Uma adolescência de praias de águas frias e marés violentas, à qual se juntou um crescimento em estúdios de pouca qualidade onde a estridência dos instrumentos raiava o inconcebível, resultou nisto: um zunido permanente e enlouquecedor, que me varre a cabeça, de um lado ao outro. De repente, é como se todos os sons mundo se tivessem transformado numa única nota estática e inabalável. Um feixe ruidoso, a fazer lembrar uma pequena descarga eléctrica, ergigido sobre o cerebelo como uma fasquia do salto em altura. Assim: horizontal, sereno e recto.
Não sei se a minha audição é recuperável.
O que resta a um músico quando a surdez o afecta? A que soam as guitarras desbravadas com raiva quando a nota mental não se altera? E um prato de bateria, um crash violentado por uma baqueta enérgica, soa a quê? E as canções? O que cantam aquelas pessoas dos video-clips, movendo a boca em letras sem sentido, inaudíveis? Cantarão bem? O que é isso da "afinação"?
Vamos repetir o solfejo numa imagem mental cada vez mais abstracta. Harpejemos numa guitarra acústica desafinada, imaginando mi-lá-ré-sol-si-mi. Soa bem...