Arte: expectativas, perspectivas e funções
1- O autor-criador:
Defina-se esta personagem como "aquele que vos ilumina". Eu, neste caso. Digamos que somos uma espécie de Garcia Pereira, mas em importante. Temos brilho, carisma e vontade de intervir. Criamos! Condicionamos correntes estéticas, tendências de pensamento e p.v.p's. Sobre nós fazem-se reportagens, críticas, recensões e entrevistas. Sem nós, o que seria do Blitz, do Mil Folhas, do Jornal de Letras, do Y e de todas as outras publicações que, chatamente, insistem em ligar-me "ah, Sr. Guitarrista Famoso, eu sou uma estagiária aqui no Expresso, venho de boas famílias..." Claro que estou sempre disposto a falar ao meu bom povo auditivo. Mas às tantas cansa. Um bocado.
1.a) Expectativas:
Um artista espera de si mesmo o inatingível. Pode soar estranho, mas é assim mesmo: um artista que se realize, que se concretize numa só peça ou um só gesto ou um só texto, pode atirar-se, logo a seguir, de um penhasco com os bolsos cheios de chumbo. Um penhasco alto. Tipo, da altura do Hotel Sheraton, no mínimo. Se for um penhasco pequenino, tudo pode correr mal e a vida transforma-se numa tenebrosa e centrífuga inconsequência. Fora as fracturas. A piada de ser artista é concluir constantemente que se pode fazer melhor. É, ainda mais, ambicionar esse melhoramento. Nós somos seres em constante mutação. No bom sentido. Eu, por exemplo, que percorro o trilho do supremo e almejo o estado mais mínimo da imperfeição - eu sou homem, não sou divino, ora essa!... -, dou por mim emendando-me, aprendendo-me e reconstruindo toda a realidade que engulo, às migalhas, no dia a dia. E vomito, às fatias, nas vossas gamelas. É arte!
1.b) Perspectivas:
Sobre isto eu já falei. O artista não olha para o mundo como vocês, mortais vulgares. O artista normalmente usa óculos, por causa de trabalhar à noite e ter pouca luz e ter que ler e pintar. E outras coisas. Além disso, o criador - como eu, por exemplo - é um ser excelente. Uma espécie de membro do Partido Humanista, mas em racional: a busca do ser Humano que há em cada um de nós, artistas, faz-se absorvendo o mundo e construindo, a partir desse exercício, uma irrealidade paralela - sob as notas de música, as pedras esculpidas ou as telas sujas com tinta aleatória -, pronta para ser recebida passivamente pelo espectador. Isso também tem piada. E é por isso que a maior parte dos artistas foi para artista. É quase como ter um revólver carregado num banco de urgências de um hospital: faz-nos sentir poderosos.
2- O espectador:
2.a) Expectativas:

Como diria - e diz - o meu bom amigo Selvagem, "O criador pode fazer o que quiser desde que não aborreça os espectadores". O espectador espera, portanto, ser entretido. Daí a recorrente confusão entre "arte" e "entretenimento". A arte, propriamente dita, pode vir a revelar-se menos atraente para o espectador do que o entretanimento, uma vez que a primeira busca algo antes da satisfação do espectador. Chega mesmo a ignorar o espectador no momento em que nasce ou passa a existir, ainda que em potência. Quem tem paciência para assistir a um recital de ógão com interpretações de Bach, quando pode tão simplesmente chegar ao Pavilhão Atlântico e ver a Madonna? A Madonna é muito mais mexida... Mas há quem consiga conciliar as duas vertentes: arte + entretenimento. Há quem o faça com inocência e há quem saiba manipular a obra e o culto, tornando-se popular, por um lado, e elevado acima da mediocridade, por outro. Exemplo paradigmático é Emir Kusturica: a crítica ama-o; o povo adora-o. É inteligente, pertinente, sensível e, claro, entretido. E é assim que vende o seu detergente. É de boa qualidade, é certo. Mas é detergente. Contudo, é disto que o povo gosta e é isto que o povo espera: pagar e ser bem servido. Sem contestação.
2.b) Perspectivas:
O espectador olha para a arte da mesma meneira que os eleitores olham para Santana Lopes: acham-lhe graça mas ninguém o quer para nada. O povo, tanto o auditivo como as outras tribos de passivos que aguardam o produto artístico de receptáculo intelectual (salvo seja) aberto, não percebe a "arte". Não atinge, não chega lá. Ou uma pessoa explica "o que é aquilo" (aquela mancha azul do Miró, aquela sequência anti-ortográfica de vírgulas do Saramago, aquele feedback doído do Guitarrista Famoso, seguido de um poderoso mergulho na multidão...) ou o povo sai boqueaberto mas pouco emocionado. E o boqueaberto tem mais a ver com o sono do que com o espanto. O povo quer lá espantar-se...