O dinheiro de volta!
As primeiras notas soaram, mas não devem ter soado bem. "Vê lá se tocas essa merda como deve ser", quem o disse foi o baixista. A seguir, apagaram-se as luzes, o público, o dia. As tábuas do palco acolheram-me com um estranho conforto: o corpo desistira. Ao fundo, muito, muito longe, ouvia um estranho feedback em descontrolo. Penso que desmaiei.
O mal do Alentejo é este: o tempo passa muito devagar; o vinho tinto escorrega muito depressa. A primeira imagem que tenho é a do baixista, com uma expressão deveras furiosa, a olhar-me de cima. O baterista, mais humano e preocupado, ia molhando a minha testa com água fresca. "Onde é que estou?" "Foda-se!..." Exclamou o baixista, num misto de desalento, fúria e paternalismo. Voltou as costas e saiu. "Vá lá, pá, acorda. O público está à nossa espera." Lá fora ecoavam gritos da multidão "Men-te-cap-tos! Men-te-cap-tos!" fundidos com alguns assobios e vozes soltas, estas mais raras, reclamando "chulos! Eu paguei bilhete!" "O concerto já começou?" perguntei, atordoado, tentando levantar-me do sofá. "Man, estes camarins são à maneira..." E eram mesmo. É a vantagem de se ser cabeça de cartaz num festival de verão: pode-se fazer exigências. "Foste tu que pediste os sofás..." "Eu?!..." Levantei-me, cambaleei com dois passos à rectaguarda. "Da-sssssssse... isto 'tá mau..."
Subi os três degraus, surgi no palco, de frente para aquele exército expectante. Um foco inconveniente bateu-me no rosto, como se o molhasse com água muito quente. "Puta que pariu... desvia essa merda p'ra lá...." A multidão ruidosa bramiu um "eeeeeeeeehhhhhhhhhhhhhhhh". Senti-me arrepiar, acho que sorri. O baixista aproximou-se "não fodas tudo outra vez" e deu-me uma palmada nas costas. Carreguei no pedal e a guitarra rugiu com violência "quando o mundo / não te vira as costas..." e o público entoou, vibrante. Com esforço, fui recordando a letra. Algumas partes que não consegui recuperar da memória toldada disfarcei com "uargh-uargh-uargh..." Mas já tudo estava incendiado. No solo, atirei-me ao amplificador, deixei-me cair de joelhos e levei a distorção ao cúmulo da incerteza. Delírio completo. Ao fim da primeira música, o povo parecia rendido. E a minha cabeça parecia espremida, pesada e vazia, ao mesmo tempo. Senti-me cansado, muito cansado. Não conseguia lembrar-me de nada. "Vá lá, caralho, 'tás parvo ou quê?" era o baixista, novamente. Arrancámos para a segunda, mas a música coxeava...
No final, tivemos direito a encore. Ou, melhor, o público pediu encore. Mas, por essa altura, já eu tinha a cabeça debaixo de uma torneira de água fria. "Foda-se, fizeste tudo para arruinar isto, pá..." disse o baterista, enquanto ele próprio se refrescava. "Vai-me buscar uma cerveja, antes que eu comece a ressacar... Se fazes favor."