Aconteceu em Cascais
Levam-me tudo. Aos poucos e poucos, o imaginário memorizado em anos e anos de infância e adolescência vai perdendo o sustento físico, a matéria sobre a qual se erigiu. Há alguns anos atrás, deitaram abaixo a antiga casa dos meus avós, que ficava numa cerâmica grande, onde se fabricava o tijolo, na boa tradição industrial do Oeste estremenho. O edifício ainda hoje se faz cenário de alguns sonhos que tenho. O ambiente rude da maquinaria arcaica espalhada pelo o espaço amplo, a serradura e o seu cheiro empoeirado, o barulho das panelas que alimentavam os fornos, a sirene de aviso ao telefone, o cheiro a óleo na entrada, o calor insuportável de um chão que se contorcia à hora de cozer o barro. Um ambiente entre o grotesco e o fantástico, concerteza povoado por super-heróis, aberrações, maldições e bons enredos da minha autoria, que ali fui crescendo, desfrutando da envolvência do sítio. Hoje, no lugar da velha cerâmica, está pousada uma colorida escola, muito arrumadinha. Parece de plástico. Não sobrou nem a imponente chaminé.
Mais tarde, a tragédia-maior: a minha escola primária! Ó, homens banais e ignorantes, que fizestes vós? Onde está a minha escola primária? Um edifício belíssimo, no estilo típico da arquitectura do "regime". De um só piso, rente ao chão, com jardim em frente e nas traseiras. O alpendre, lá atrás, que abrigava a entrada para os lavabos. Muita bola se jogou ali. No dia em que sobraram os escombros, olhei e comovi-me. No dia seguinte, nem os escombros sobravam. Agora é um pátio grande, que não serve para nada. Desconfio que a destruíram só por maldade.
E há mais sítios da memória que a ruína levou a baixo. A ruína ou a impiedosa mão dos homens no tempo. O Estádio da Luz... ó, o Estádio da Luz. Vê-lo ali, amontoado em despojos de betão desarmado e tijolo antigo. Antes já ele fora amputado, na curva sudoeste. Como um velho a quem roubam a dignidade.
E agora isto... E agora isto! Fiquem sabendo que o dia 2 de Maio de 1996 será impossível de esquecer. Billy Corgan, que na altura era um Zero de esquerda, um cometa cheio de brilho na pele da cabeça rapada, despenhou-se a poucos quilómetros da serra de Sintra, numa cápsula cuja tripulação incluía James Iha, D'Arcy e Jimmy Chamberlain. Chovia muito e a praça de touros de Cascais mais parecia uma piscina. Como não é uma piscina, vão destruí-la em Junho.
Quando eu contar aos que virão as coisas que fui vivendo e onde as vivi, quantos destes acreditarão em mim? Como poderei mostrar-lhes o mundo onde cresci? Provavelmente, serão histórias desinteressantes, de qualquer forma. Desculpem incomodar-vos com o desabafo. Vou falar com uma autarquia qualquer para que se proceda, o quanto antes, à demolição da minha memória.