Os dias terríveis
Uma estrela não é estrela 24 horas por dia durante os 365 dias do ano - acrescente-se mais um nos anos bissextos. O artista, mesmo enquanto estrela, vive numa plataforma instável, rodeado de insucesso por todos os lados. É uma espécie de ilha da sobrevivência. Ou, durante os dias terríveis, uma jangada descendo o Rio Bravo. Em certas alturas, este pedaço de universo que nos suporta é uma espécie de Ibiza, sempre em movimento, cheio de gente bonita, a latejar de vida, à parte das realidades e preocupações mundanas. Mas, durante os dias terríveis, não passa de uma piroga de solidão pronta a voltar-se e a deixar-nos cair na torrente à mercê da revolta das águas do insucesso. A crítica, que durante os tempos ibízicos nos soa indiferente, passa a ganhar peso na nossa auto-estima; os seguidores, que sempre pareceram próximos e que dantes bebiam e sorriam ao sabor dos sons que produzíamos, descobrem novas ilhas de entrenimento garantido e fácil, ganham outros rumos; os seguidores verdadeiros e fiéis temem por nós, mas tudo o que podem fazer é lançar-nos um colete de salvação num sorriso, numa palmada nas costas, numa cerveja ao fim do dia; os músicos que connosco cresceram voltam as costas, dizem que querem mais, que assim não dá, que querem habitar um continente de esplendor e luxo. Já cantavam os sumidos Brain Dead "when you smile the world smiles with you / but when you cry, you cry alone". É durante esses dias terríveis que me obrigo a pegar na guitarra e a remar, tentando flutuar sobre as águas definitivas, forçando os dedos na busca de uma corrente bondosa. Exercito a sobrevivência sem forçar o regresso ao sucesso. Não se trata de uma escalada; é antes necessário recorrer às artimanhas da navegação. Não se pode perder a cabeça. Há que manter a calma: uma remada de cada vez, bem medida. Traça-se o objectivo - não, não procuro terra firme, isso é aportar, é desistir. Eu vou com as águas. Prefiro um afogamento doloroso mas digno a uma fuga para porto seguro, onde só poderei enxugar o corpo, sabendo que, depois de enxuto, este não mais voltará a dispôr-se à vontade dos vigores das águas. Nunca está tudo perdido.