Sobre o ser humano - IV
Em cada ser humano existe a noção global de Humanidade. É uma permissa optimista, bem sei. Mas, como já afirmei, eu olho para as coisas de um modo harmonioso, positivo. Existindo esta noção, dispara-se em cada pessoa um automatismo que faz com que nos sintamos responsáveis pela espécie humana, pelo conjunto total de seres semelhantes a nós que povoam este recanto ambíguo do universo. Ora, estas tentativas automatizadas de auto-responsabilização pelo todo não passam de um reflexo instintivo. O altruísmo é uma falsidade animalesca: o ser humano não troca, racionalmente, o seu bem estar em prol de toda a espécie ou mesmo de um determinado grupo - exceptuando se esse grupo se tratar da própria família e isto apenas em alguns casos. O conceito "a minha vida pela dos outros" é uma animalidade. O mártir voluntário não passa de um simbolismo antiquado - noutros tempos, o ser humano não valorizava a própria vida; acreditava nas recompensas da vida eterna, etc. Hoje em dia isso não é nada assim. Desde O Clube dos Poetas Mortos e da generalização da expressão carpe diem, o ser humano com acesso aos cinemas e, mais tarde, à televisão, quando a RTP1 passou a exibir regularmente o filme, deu mais um passo gigante em direcção à iluminação final. Do fétiche populista "a minha vida pelo meu povo" passou-se ao conceito atinado e egoísta "a minha vida é porreirinha, deixa-me cá aproveitar antes que envelheça e/ou adoeça". O egoísmo honesto é a salvação do ser humano enquanto indivíduo em busca da plenitude.
Para ilustrar, passo a exemplificar. O problema das minas anti-pessoais em Angola. O ser humano normalizado olha para as tragédias do povo angolano, ao ver o Telejornal ao jantar, e pensa "geee... que chatice". Isto é bom, acreditem. Se fosse na Idade Média - supondo que na Idade Média podia existir televisão e noticiários, mesmo sem electricidade -, um gajo era capaz de ver as imagens e dizer "epá, eu dava a minha perna direita para que Deus acabasse com as minas antipessoais em Angola e esta tragédia terminasse já hoje". Imaginando que Deus cumpria a sua parte, e supondo que falamos de gente honesta que cumpre com a sua palavra, e tendo ainda em conta que isto eram tempos em que esta epécie de noção de martírio altruísta era praticamente uma banalidade, estaríamos perante um eminente movimento de massas perigoso; a tragédia humanitária poderia atingir números ainda mais catastróficos do que os da Angola presente: da China à Austrália, passando por Canadá e Portugal, a quantida de de gente amputada da perna direita seria, seguramente, superior aos números hoje em dia registados nesse belíssimo e tão mal-tratado país da África austral. É o que dá o "altruísmo" à moda antiga.
Hoje em dia, o altruísmo deve ser egoísta. Por exemplo, nós, os artistas, quando queremos acabar com as minas antipessoais em Angola, fazemos um mega-concerto com várias mega-bandas para angariar fundos a aplicar na causa. No caso, a desminagem de Angola. Uma coisa tipo Live Aid. Ou seja, não é que uma pessoa não queira acabar com o flagelo. Mas fá-lo de uma forma egoísta, ou, se quiserem, de uma forma "altruísta-contemporânea", e, ao contribuir para a causa, aproveita-se para confraternizar com o Bono Vox ou o Chris Martin. Isso, sim, é subir uns patamares na imensa escadaria que liga o ser humano à infinita divindade. Eu não troco a minha perna direita pelo fim das minas antipessoais em Angola; mas sou capaz de tocar umas canções a custo zero e assim contribuir para a causa. É bonito ver como o ser humano evolui e deixa, aos pouco, de ser arcaico e contraproducente.