Querida Guitarra
quarta-feira, junho 29, 2005
  Sobre o ser humano - V
Nós, os humanos, e nós, os artistas, temos preocupações em comum. Não há quem não queira saber o quanto vale para os outros. E quem diz o quanto diz o como, de que forma se é valioso. Importarei muito ou pouco? Positivamente ou nem por isso? Com paixão ou desinteresse?

Parece-me que existem dois níveis para a mesma questão: o do humano, um ser racional-sentimental simplificado; e o do artista-criador, ser com uma composição mais elaborada, uma complexidade mais rebuscada.

E, neste caso específico - e raro! -, tenho a impressão de que o humano leva a melhor sobre o artista. Senão, vejamos: a preocupação do mortal banal normalizado prende-se, a este nível, com a importância que tem para o mundo que lhe interessa, isto é, para os que lhe são próximos. É uma situação mais confortável e, acima de tudo, mais compensadora do que a situação de um artista. O mundo que interessa ao artista é o próprio mundo, o planeta todo, a humanidade no seu conjunto - a presente e a vindoura.

Trocando por miúdos, se ao humano simplificado e humilde lhe basta saber se a mãe se orgulha dele ou se a mulher o despreza, ao artista importa-lhe ter a consciência de que a Humanidade o admira e venera, inspirando-se em si e na sua energia para enfrentar as agruras do dia-a-dia. E é aqui que chegamos à parte do conflito de interesses.

Se repararem, as perspectivas não são propriamente paralelas - o humano básico não existe numa dimensão à parte da existência do nobre artista. Existe uma espécie de rota entrecruzada num movimento perpétuo que, por vezes, pode implicar colisões. Isto porque, se a interdependência entre nobre artista e pessoa lisa existe, esta existência não é equilibrada.

Façam-se as contas: o artista precisa de todos os humanos. Já os mortais regulamentares necessitam apenas dos seus semelhantes próximos. Não que não necessitem de ídolos. Mas os ídolos não lhes são fundamentais para a consumação da existência - e os mortais simplificados são fundamentais para a existência do artista realizado. Os artistas são apenas muletas que ajudam o povo vácuo a fingir que a sua realidade até é interessante e que não são frustrados a caminho da morte, num processo lento, arrastado e, eventualmente, triste, que não terá valido a pena. E isto é um jogo desleal! O reconhecimento nunca é verdadeiro, mas antes efémero, pontual e interesseiro.

Termino com um exemplo: imaginem que sou assassinado, em segredo, por uma fã lunática que, depois de disparar sobre o meu valioso crânio (três vezes, "pelo sim, pelo não"), decide amputar-me "vários órgãos" para guardar em casa, só para poder exercer sobre algumas partes minhas uma solitária e libidinosa contemplação. A polícia descobre, porque uma vizinha, que também é fã e é invejosa e mesquinha, tudo faz para descobrir que poderoso objecto é aquele que a primeira venera e que se encontra barbaramente erigido sobre o pequeno altar em que transformou a mesa de cabeceira; descoberto o mistério, com choque e achaques, a mesquinha da frente liga para a polícia e esta, em decidida diligência, arromba a porta da casa da primeira e descobre o que de mim sobra a fazer as vezes do candeeiro, por cima da gaveta das peúgas. Mas sem dar luz. A macabra e, ao mesmo tempo, sensual descoberta faz aberturas de telejornais e capas de diários que não sejam especializados em economia.

É aqui que chegamos ao ponto de colisão. Quem não tem mais o que fazer a não ser andar infeliz e miserável, como é apanágio da pessoa inócua, sofre com o meu desaparecimento, lamenta e carpe a minha partida prematura. Mas, de entre estes mortais ruins, há sempre quem se desconcentre com facilidade. Basta, por exemplo, que se lhe avarie um electrodoméstico.

Regressando ao prédio das duas fãs, suponhamos que também lá habita, no andar de cima, uma família corriqueira, com suas tramas, desinteresse, bibelôs, traições e faltas de dinheiro imensamente vulgares. Eis que se lhes avaria o frigorífico e ficam as costeletas de porco à beira de um perigoso descongelamento. Isto, à mesma hora que as câmaras das TV's e dos repórteres fotográficos lhes invadem o prédio para testemunhar e documentar a descoberta de uma pedaço mui cobiçado do corpo do martirizado Guitarrista Famoso. Achais, ó povo básico, que esta gente se vai enlutar por mim? É o enlutas! O que lhes importa é salvar as costeletas. O que os preocupa é que não têm dinheiro para pagar o arranjo do electrodoméstico. O que os inquieta é que têm que pedir esse dinheiro emprestado à vizinha da frente, autora da denúncia. O que os lixa é que ela está ocupada a dar entrevistas em catadupa a uma vara de jornalistas que a circundam famintos. O que os exalta é que ela nunca mais se despacha. O que os agita é que ela não se preocupa com isso. O que os exaspera é que as costeletas estão á beira de um desfecho trágico. O que, por fim, exclamam é "mas por que é que este cabrão tinha que morrer hoje?!"

Perceberam a ideia?
 
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