Querida Guitarra
segunda-feira, novembro 07, 2005
  Proslóquio (com nuances) sobre o Trianom
Os artistas - e até mesmo as pessoas mortais - têm os seus rituais. Não é surpresa para ninguém o que aqui digo. E rituais há-os mais simples e comedidos - ir ao Colombo ao domingo à tarde, ver as novelas da TVI, ler o 24 Horas, andar de FIAT Punto em 2ª mão no IC19, levar os filhos a comer Hépi-míes ao McDonald's do Rossio... - e depois também os há sofisticados, aqueles que condizem com a aristocracia própria de um espírito superior, inspirado, luminoso e repleto de bom-gosto - ir à foz do Minho e observar o Penedo de La Guardia, comer crepes em Moledo de frente para o mar revolto, com a Ínsua como pano de fundo, beber uma cervejinha no Garboil, na Rua Direita, ao som de um Hendrix ou de uns Led Zeppelin (também lá há músicas modernaças: Franz Ferdinand, The Strokes, White Stripes, etc.; o que não há é música chunga, isso não!), regressar de comboio e, antes do transbordo em Campanhã para entrar na Classe Conforto do Alfa para Lisboa, sair da estação portuense, atravessar a rua e ir ao Trianom comer um croissant misto e beber um café. Isto é um ritual apropriado a um artista. Ou isto ou a boémia decadente pelas ruas de Alfama. Mas, como isto é uma passagem autobiográfica e eu este fim-de-semana não estive em Alfama, estive em Caminha, vou falar-vos do tal ritual do Trianom.

O Trianom é uma pastelaria que não tem nada de especial a não ser a situação geográfica (sai-se da estação de Campanhã, atravessa-se a passadeira, tropeça-se no degrau e pronto, bem-vindo ao Trianom) e um nome cool que dá uma onda assim... tipo enigmática de cenas dos gregos e isso. "Trianom", escrevo eu, e vocês logo "chiça... deve ser um poiso de intelectuais ou assim". Não, podem desenganar-se à vontade. Ou, melhor, não é propriamente um Majestic. Ainda assim, quando ali entro confesso que o estabelecimento ganha o seu quê de glamour artístico-intelecto-cultural.

Eu gosto de parar no Trianom antes de embarcar no regresso a Lisboa. Gosto de entrar e ver aquele senhor opulento, de óculos fundos, bigode desarranjado, chegar-se à minha mesa e dizer "então, jovem, o que vai ser hoje?". Primeiro porque neste sítio ainda me é permitido o anonimato - ok, a graduação dos óculos do senhor indicia alguma incompatibilidade do mesmo com o universo visual comum. No entanto, é bom entrar num sítio e ser abordado assim, "o jovem", com delicadeza e bom português - isto, em vez do habitual e irritante "Guitarrista, Guitarrista, vá lá, dá-me um autógrafo e um beijinho", das crianças, ou os mais arrojados "Guitinhas, põe-me de gatas" das suas avós. Ali, não: existe o direito à minha vida privada e, em simultâneo, existe um respeito espontâneo de ser humano para ser humano. E isso agrada-me.

Para além disto, são raros os sítios a 300 quilómetros de casa onde nos perguntam "então, o jovem o que vai querer HOJE?". É tratamento digno de cliente habitual. De início, julguei que me confundisse até com alguém igualmente bem-parecido, educado, charmoso e de voz bem colocada que costumasse frequentar o café. Mas não. Hoje tive a prova. Terminava eu o acto de pagamento quando o senhor se virou para mim e desejou afavelmente "faça uma boa viagem". Isto é de bom observador - eu não utilizo malas de viagem; transporto-me apenas com uma mochila, que podia ser de viagem como poderia ser para ir para a Secundária ou para o treino futebol. Em seguida, questionou-me: "é de Lisboa, não é?" e eu disse que sim - mais uma vez, boa observação (por motivos meio difusos, a minha pronúncia é, neste momento, uma espécie de cocktail entre saloio, lisboeta, alfamês e portuense/minhoto, sendo que este último ingrediente assume preocupante preponderância na salganhada). "Veio apanhar os ares do Porto?", continuou. "Não. Venho de Caminha. Mas, como paro no Porto..." "ah... boa escolha, Caminha. Pois, faça boa viagem e até à próxima". E foi neste singelo episódio que vim a pensar durante toda a viagem rumo ao sul, sempre que me fartava de folhear a Maxmen...
 
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