A validade dos prazos
Já várias vezes escrevi sobre a necessidade de auto-superação do ser humano como forma de iludir a sua essência perecível e efémera. Porém, discursar sobre um tema partindo de pressupostos e observações rigorosamente lógicos é substancialmente diferente de falar sobre algo que me deixou agitado nos últimos tempos. E falo de agitação não só ao nível racional. Tem sido sobretudo emocional este transtorno. Sinto-me verdadeiramente um animal acossado. E estou a falar muito a sério.
Falo de quê? A resposta pode ser "da idade". Mas não é bem. Tem mais a ver com uma espécie de "passagem de prazos". A verdade é esta: ao realizar aquela manobra meio pateta do "ai, deixa cá ver que cenas é que eu quero para este novo ano" percebi - atenção: percebi, no sentido de "caí em mim" ou "tomei consciência" ou ainda "iluminei-me" - que este "novo ano" é já o de 2006. Isto assim, em abstracto e sem contextualização, não agita ninguém. No entanto, ao aperceber-me dos 15 anos do início da guerra do Iraque, dei-me conta que, nessa época, a minha ideia de "o futuro" seria qualquer coisa por volta dos números 2000 ou 2001. E o que é feito disso, do tal futuro? Já lá vai e ninguém deu por ela. Passou de um modo tão banal quanto discreto.
Eu não sei se percebem a minha ideia. O que tento dizer é que existe nesta torrente cronológica uma angústia permanente - pela inevitabilidade inerente, por um lado; mas, acima de tudo, pela desilusão de haver sempre qualquer coisa a seguir, de todos os prazos terem uma validade frágil, de todos os planos serem ilusórios e pouco significativos numa perspectiva mais alargada da existência (mesmo da existência individual; senão, vejamos: o que é que significou para mim, por exemplo, a passagem de século-milénio? Uma festa. Apenas mais uma festa. Ou seja, existia uma carga hiperbolizada por trás de uma data, que era esta apenas por convenção. Mas, na realidade, materializando, o acontecimento - ou o fenómeno em si - revelou-se inócuo, inconsequente).
Agora que o contexto está exposto, vou direitinho ao que verdadeiramente me arrelia. Falo da validade dos meus prazos. Ou, melhor, do vazio real que se encontra por trás dos tais prazos ilusórios que tendo a imaginar e a propor-me. Refiro-me àquilo a que, no meu imaginário ingénuo, eu tinha como "o dia". Do tipo "quando chegar o dia" ou "um dia destes" ou ainda "no dia em que eu" qualquer coisa. Isto, porque eu depositava em mim grandes esperanças, tinha quanto ao meu percurso futuro enormes expectativas. E, visto daqui e do agora, tudo não passa de um surrealismo pincelado com projecções de quotidianos verosímeis mas inatingíveis: "o dia" não existe. Nenhum desses "dias".
É verdade que existem percursos, vitórias, motivos de orgulho - este texto não pretende ser um manifesto pessimista nem um ensaio sobre a frustração: levo uma vida agradável, faço as coisas de que gosto e rodeio-me, felizmente (e por culpa de alguns dos leitores "residentes") de gente boa, que vale a pena. Simplesmente, constato que essas fábulas infantis que constantemente me remeteram para imagens do estilo "quando eu for grande quero ser" afinal não têm textura, não têm raiz nem densidade nem sequer razão de existir. Tudo o que existe é um percurso, só isso. E, se eu não tiver cuidado, se me fixar apenas nos "dias", deixarei que tudo se resuma à não concretização de qualquer dos planos - os prazos de validade, nestes moldes, expiram com alguma facilidade.
E estas conclusões levaram-me mais longe. Para além dos prazos e dos dias intangíveis, existe a matéria principal: a auto-proposta que desde há muito tempo acompanha a minha existência. Uma vez mais, as minhas expectativas eram - ou vieram a revelar-se - grandes. Demasiado grandes, talvez. Eu acreditei piamente que poderia, "um dia", fazer a diferença, mudar qualquer coisa, acrescentar algo à gigantesca massa que perfaz a Humanidade ou até - quem sabe? - deixar a minha assinatura na História. Mas desengano-me. Na verdade, e pensando um pouco, não me parece que tenha algo de pertinente a acrescentar ao mundo. A relevância do que penso é pouca e confina-se ao consumo próprio. Tudo o resto é mediano, igual a tantos outros - ou, mesmo que diferente, nunca substancialmente arrojado e superior para me diferenciar e, muito menos, para me elevar sobre os demais.
Cheguei a estas tremendas conclusões - não calculam o que resta da minha auto-estima... sobras, escombros, ratazanas ocasionais... - precisamente através da análise da impertinência do efémero juntamente com esta nova consciência da inocuidade dos tais "dias". Regressando ao primeiro tema, ainda há poucos dias via uma dessas reportagens da SIC que fez um interessante apanhado com histórias que marcaram os mandatos dos presidentes da República Portuguesa. O retratado era Sidónio Pais. Dizia a referida peça que Sidónio Pais fez uma carrada de coisas, que misturava o populismo (ainda em vigor) com políticas extremistas que, por vezes, causavam revoltas, etc, etc. E eu pensei para mim "epá, este Pais devia ser um homem e pêras!" Gostasse-se ou não do Presidente, o facto é que marcou uma época, ficou para a História. E, em seguida, tentei vislumbrar a imagem que tinha na minha cabeça deste pretérito Presidente: quase nada; um senhor antigo, com roupas da época, que há-de ter feito qualquer coisa - como todos os antigos que aparecem "na História" hão-de ter feito... e foi aqui que, uma vez mais, se fez luz: a verdade é que na minha cabeça, as figuras históricas surgem, invariavelmente, como "gente antiga". Os seus méritos nunca são devidamente reconhecidos. Para mim, sem o contexto, sem a experimentação do quotidiano destas figuras, elas surgem para mim como "obviamente históricas". São assim porque sempre foram assim, pronto. Coisas lá dos antigos...
Ora, eu acho que esta mania que eu tenho - ou tinha! - de acreditar na teoria dos "dias" advinha precisamente desta (falta de) consciência das figuras históricas enquanto seres humanos reais, de carne e osso, com depressões, constipações e obstipações, mas preciosamente valiosos. Daí que acreditasse que, "um dia", por obra e graça de um destino que me calhara abençoado, eu haveria de ter algo a acrescentar à Humanidade e, por inevitável consequência, entraria nos compêndios dedicados aos homens e mulheres que, pelo seu valor, prevaleceram - enquanto municiadores do imaginário comum sobre o que é um ideólogo, um guerreiro heróico, um fiel mártir, um grande escritor, um compositor genial... - como herança dos próprios seres humanos, que os vão deixando, de geração em geração, cada vez mais longe daquilo que realmente foram.
Toda esta nova percepção das coisas, através desta revelação, me deixou ainda com outra dúvida: estarei a ficar velho ou apenas a deixar de ser novo? Será o início da descrença o princípio da maturidade? Porque é aqui reside a principal aflição. Numa expressão simplificada, "na impossibilidade de voltar atrás". E não falo em "voltar atrás" como eufemismo para "emendar a merda que fiz". Nada disso. Falo em voltar ao liceu, por exemplo. Voltar a jogar à bola na rua, com os putos, que são todos meus amigos, da minha idade. E o que mais assusta é a consciência simultânea de que estes desejos pouco sãos me turvam o desfrutar da idade e do contexto que tenho e em que vivo hoje em dia e que, daqui a alguns anos, vou ter desejos semelhantes sobre os dias de hoje. Porque eu acho que vou conservando todas as idades que tive como se não tivessem expirado o seu prazo. Mais, estou sempre à espera de "um dia" acordar e descobrir que está tudo bem: o despertador está a tocar, a minha mãe já me preparou o pequeno almoço - hoje o dia começa com duas horas de Educação Física. Às vezes ainda tenho sete anos, como na escola primária. Mais vezes ainda tenho quinze ou dezasseis. E nunca sei muito bem por que razão não me deixam ter essas idades na mesma. Eu gostava delas!
Acho que, na verdade, e tentando concluir dando algum sentido a este longuíssimo desabafo, sempre me projectei no futuro sem acreditar convictamente que esse futuro chegasse, que eu crescesse, que os dias e os anos passassem, que a vida mudasse...