Soundcheck
O soundcheck estava agendado para as 3 da tarde. Curiosamente, o meu despertador estava programado para as 3 e meia. O atraso não seria demasiado grande. Além disso, quem tem roadies tem quase tudo e eu só trabalhava com gente da minha confiança. Foi em Braga que isto tudo aconteceu.
O concerto não ia ser nada de muito excitante - organizado pela Câmara local, era uma coisa a puxar ao popularucho. Íamos tocar para o povinho, na sua globalidade: não havia cá bilheteiras nem cartazes de apoio do clube de fãs. Não havia qualquer tipo de triagem a priori. A gente chegaria e ficaria de olho atento e sobrolho erguido numa desconfiança de quem não conhece os macacos em cima do palco. A maior parte da gente, pelo menos. Por mim, tudo bem. Desde que pagassem - e pagaram -, tocava nem fosse num jardim de infância.
Três e meia e o despertador tocou.
O hotel não entusiasmava por aí além. Um Íbis banal cujas traseiras ou a lateral ou lá o que era dava para um largo, em obras (entretanto, acho que construíram lá um centro comercial), no centro da cidade. A localização era boa: ali perto tínhamos o Deslize, onde os Mão Morta se emborrachavam forte e feio e tocavam acordes e debitavam poesia pela canibal do Adolfo Luxúria. Também ali perto existia o Popolum, uma discoteca muito na berra, à altura, com motivos góticos bem esgalhados e universitárias bem dispostas, especialmente depois de umas tequillas ao balcão. Ninguém me conhecia.
Duche matinal, longo, retemperador, curador de ressacas. Só depois do duche reparei que não dormira sozinho. "Como é que vocês se chamam?" Ensonadas, não responderam e apressaram-se cobrir-se com o lençol. "Estão com vergonha?" Não responderam. Mas também não baixaram o lençol. "Vistam-se e vão para casa, vá". "Só uma coisa... vocês já têm idade para isto?" Não responderam, saíram à pressa. Mas se há coisa que eu não quero é problemas com a justiça. De qualquer modo, mesmo que não tivessem idade, tinham pelo menos experiência, isso deu para ver. Havia de servir de atenuante, caso a coisa corresse mal.
Pelo sim, pelo não, meio-litro de Coca-Cola com muito gelo. A seguir, ainda mais pelo sim, pelo não, dois copinhos de Wiborowa straight. Ligam-me da recepção "sr. Famoso, temos um recado para si". Aparentemente, deram pela minha falta. Vesti-me e fui, a pé, até ao local - era mesmo na praça principal (como é que se chama a praça principal de Braga? A memória já não é o que era...). Uma de skunk para o caminho.
"Ó Guitarrista, foda-se!..." "Bom dia também para ti". Passaram-me a guitarra. "Esta merda 'tá desafinada". "Atão afina..." "Mas pagam-te para quê?" A conversa ficou por ali. Não me apetecia chatear com ninguém. Além disso gosto de olhar o meu interlocutor nos olhos. E esse não era um dia em que eu conseguisse sequer tirar os óculos de sol. Estava tudo de mau humor. "Fizessem como eu, fossem descontrair ontem à noite..." Olharam-me de lado num gesto concertado. Afinei a guitarra, fiz o meu som e recolhi-me numa pastelaria ali por perto. Enquanto o pessoal das luzes ensaiava os primeiros movimentos, eu bebia Super Bock - será que acima do Mondego não se vende Sagres? O dia não me estava a correr bem.
"Guitarrista Famoso?!" "Yá. Se bem me lembro, e se não estou suficientemente confuso, sim, acho que sim, é isso..." Finalmente, alguém que me reconhece, uma fã... "Boa tarde, o meu nome é Sílvia... Tínhamos combinado uma entrevista, para o JN, lembra-se? Andei à sua procura a tarde toda..." No norte, as minhas fãs são tão raras como os estabelecimentos que vendem Sagres.