Desconstrução
Sábado à noite não saí de casa. Fiquei a ver televisão. Deu um programa que era a Desconstrução. Uma coisa, algures entre o documentário e a reportagem, dentro do estúdio de gravação de Carioca, o último álbum de Chico Buarque. Desconstrução não é um objecto que se possa qualificar como "interessante". É um adjectivo curto, muito curto. Porque não tem apenas interesse.
Dentro desse estúdio - e qualquer músico que tenha estado em gravações irá reconhecer-se ali, imaginar-se naquelas conversas, dentro das salas a dizer "como é que foi?" e cá de fora "é melhor vir cá escutar"... - circulam várias personagens. No entanto, há duas que são claramente o centro da trama: o Chico, ele próprio, e Luíz Cláudio Ramos (tratado por Cláudio), o autor de todos os arranjos e orquestrações do álbum (aquilo funciona assim - e isto é o Chico que diz: "faço a melodia, ponho a letra e aí dou para o Cláudio... depois não quero saber mais, ele é que sabe, ele é que diz... às vezes dou palpite"). A relação entre Chico e Cláudio é simplesmente deliciosa. Se um é génio o outro é mestre. E fica bonito ver a reverência e o respeito do génio perante o mestre. Naquele estúdio quem manda é Cláudio. Chico é apenas uma espécie de criança imensamente feliz por estar a gravar mais um álbum.
Há uma imensidão de pequenos detalhes que simplesmente transformam o zapping numa impossibilidade. Mas há alguns que ficam. Um desses é a maneira como, aos poucos, uma pessoa se apercebe da forma simples e sincera de Chico Buarque ter orgulho no que faz, de saber que é genial. Várias vezes se o ouve dizendo "me pediram isto, mas era impossível... e aí eu fiz". E di-lo com um sorriso que não engana ninguém: o miúdo não se está a gabar, está realmente contente, como se tivesse feito uma coisa de que ninguém estava à espera, só para contrariar. Mas Chico é capaz de dizer isto com a mesma naturalidade com que assume que não é instrumentista. "Sou muito trapalhão", alega, "trastejo muito, o violão sai sujo", complementa.
Em Desconstrução vê-se o trabalho, aquilo que dá origem a um produto final - muitas vezes banalizado, maltratado, mal vendido, mal promovido e, por fim, mal ouvido - feito com minúcia, com alegria, com preocupação, com dedicação. Com horários, embora Chico não seja muito pontual. E sobretudo com entusiasmo - ver Chico apresentar as músicas novas aos presentes é surpreendente: ele fica assim "meio sem jeito", nervoso, de olhar à espera que caiam as primeiras opiniões; e os outros (alguns deles 30, 40 anos mais novos...) ouvem, com atenção mas também com alguma displicência, riem, sorriem, acham graça a isto, acham que aquilo está bem e aquilo lá à atrás não estava tão bem. E o Chico fica feliz porque, no fundo, percebe que gostaram e isso é o que mais importa. "O resto eu depois vou para casa e escrevo de novo" (ele refere-se apenas à letra; na música, estando a melodia feita, quem mexe é Cláudio). "Vai ver, amanhã ele chega aí com verso diferente" confidencia Cláudio, sempre calmo, sempre confiante, sorridente. Falam uns para os outros mas também para a câmara, sempre presente, sempre atenta e sempre discreta. Tudo flui por ali. Tudo é normal.
Já para o final, quando tudo já correu bem, Chico recebe os netos. Mostra-lhes as músicas. Eles não querem saber, preferem brincar com o avô. E ele brinca e fica contente na mesma, com aquela sua maneira entre o charmoso adolescente e o tímido maduro.
"Mas ele ainda vai trazer outra". É Cláudio quem o diz. "Ele sempre faz isso. A gente pensa que o álbum 'tá fechado e ele vem e no último dia traz a última, mais uma. Normalmente é a melhor. É sempre a chave de ouro". Chico chega e mostra a última. Fala dos subúrbios do Rio e de S. Paulo, onde nada tem nome, nada tem espaço, nada tem identidade. "Acho que era isso aí que faltava" diz Chico. Cláudio sorri como quem diz "eu não disse?".