Vale sempre a pena
Perguntem a um actor se todos os dias lhe apetece andar aos beijos à Floribella. Perguntem a um pintor se todos os dias lhe apetece gatafunhar, gastar balúrdios em óleos, telas e pincéis, para parecer abstracto. Perguntem a um cangalheiro se todos os dias lhe apetece enterrar uma vítima da sinistralidade rodoviária. Perguntem a um advogado se todos os dias lhe apetece contornar verdades e moldar factos. E a um engenheiro se todos os dias lhe apetece fazer riscos sempre a direito. A uma professora de português que eu tive no 11.º se todos os dias lhe apetecia ser apalpada. A um camionista se a cada santo dia lhe agrada a ideia de atravessar a Espanha ou a França. Perguntem a um médico se está sempre cheio de pica para aturar a brigada da artrose num banco de urgências da província, que ainda por cima agora vai fechar e ele vai ter que vender a vivenda "O nosso sonho" e um rim do filho mais velho para pagar o externato do mais novo nos subúrbios da capital. Vá, perguntem. Perguntem ao trolha se anda sempre doido por acartar baldes de massa, andaime acima. E ao polícia se não lhe doem as mãos, às vezes, de escrever as matrículas dos carros. E aos GNR's dos arredores do Porto se não se cansam, mais cedo ou mais tarde, de fazer tiro ao adolescente. E aos cientistas, perguntem-lhes se não se fartam nunca de olhar para as bolhinhas dentro dos tubos de ensaio. Perguntem a qualquer pessoa se não tem um dia - um dia que seja! - em que lhe apetece fazer qualquer outra coisa, tudo, menos aquilo com que sempre sonhou a vida toda. Perguntem-me a mim. E eu respondo: ah, pois não, não aconteceu...
Tocava eu nos Pesadelo Crioulo - era um cruzamento entre industrial, hard-core e morna. No velho Blitz, escreveram uma vez sobre nós: "
Quinta-feira - Pesadelo Crioulo + DJ convidado, Texas Bar, 23h00, 2,5 euros". Foram os nossos 15 minutos de fama, ainda hoje tenho lá o recorte do jornal. Mas voltemos ao assunto. A gente tocava muito aí na cena underground de Odivelas, Loures e assim. Tínhamos um culto, até - o Armandinho, baterista simples e inapto, mas que parecia um enciclopédia. Aquilo é que era uma cabeça, caramba - o homem sabia a capital da Bielorrússia e da Síria e não sei quê. Se os pratos de choque se tocassem com a testa, tenho a certezinha que o Armandinho era dos gajos com mais tempo em Portugal. Não é que ele hoje não tenha tempo - a reforma por invalidez proporcionou-lhe a liberdade e o conforto para assimilar cerca de 16 horas de programação da TVI, duas caixas de Chocapic e uma quantidade indeterminada de cocacolas e pipocas por dia. Mas não era desse tempo que eu falava. Voltando à cena underground do arredor nor-nordeste lisboeta: éramos aquilo a que se chama, ainda hoje, uma banda bimestral. Não havia sagrada sequência de dois meses em que os Pesadelo Crioulo não desse um concerto! Ora, isto cansa, como devem calcular. A pica começa a deixar de ser a mesma. Os enganos já não têm piada. O público já não nos liga grande coisa. E mesmo as miúdas, que num passado não muito longínquo faziam gala em mostrar atributos mamários à banda + staff de palco, agora pareciam rapariguinhas tímidas, pretendentes a catequista (duas delas acabaram por sê-lo, deus saberá o como e o porquê...). Ora, isto desgasta, evidentemente. Uma pessoa sobe ao palco, sabe que vai ser mal paga, sabe que ninguém lhe liga grande coisa e que são poucos os que se calam para ouvir o single novo "
Sodade desse caminho amaldiçoado pra 'nha terra San Cipriano" e que, no fim, vá lá se a empregada de balcão nos der o número de telefone, já é uma sorte. Uma pessoa desanima.
Lembro-me que nesse concerto subi ao palco e disse "
ei, pessoal... hoje não me apetece tocar, pá... não levem a mal". O povo reagiu bem. A maioria das pessoas permaneceu indiferente e houve dois senhores, mais velhos, que aplaudiram. Mesmo assim, o meu sentido de responsabilidade falou mais alto. Peguei e disse para a banda "
ei, ménes... pá, isto toca-se na mesma, é na boa, eu faço um esforço". Hora e meia depois, a Xana - a do balcão - dava-me o número de telefone e os parabéns "
aquele refrão 'ai que tristeza de vida / bute aí matar a bófia / ai que desgraça esta existência / bute aí malhar na bófia' é... lindo, Guitarrista... és um poeta". Parece que nem tudo foi em vão. É por isso que deixo aqui esta mensagem, caro leitor: sejas tu médico ou trolha ou advogado ou camionista ou a minha professora ou jornalista ou engenheiro ou pintor abstracto ou bófia ou assim, não te rales. Mesmo que não te apeteça trabalhar, a vida vale a pena.