Post sobre política
Peço desculpa, eu sei que isto é um blog de música e isso, mas a figura do Presidente da República merece-me uma breve reflexão. De qualquer modo, com o aviso postado no título e esta introdução de advertência, é permitido ao leitor desistir de imediato da leitura das palavras que se seguem. Fica a nota.Hannibal, não mordas nas pessoasA vitória de Cavaco não me assusta particularmente. Aliás, nem sequer me deixa profundamente desapontado. Não houve qualquer tipo de surpresa. E não me refiro apenas ao que diziam as sondagens. Basta olhar para o lançamento das candidaturas para perceber que só existia, entre os "presidenciáveis", um único candidato capaz, com um perfil minimamente consistente para cargo de tamanha importância: precisamente Cavaco Silva. Não quero com isto dizer que votaria em Cavaco ou que fiquei feliz pela sua vitória. Pelo contrário: fiquei chateado por não ter no boletim de voto um único candidato - quando digo "candidato" refiro-me a "um gajo ou uma gaja qualquer que tivesse hipóteses reais de vir a ocupar o cargo", portanto, não incluo neste lote Louçã, Jerónimo ou o outro senhor que aparece na televisão sempre que há tempos de antena - que eu considerasse como válido, isto avaliando as capacidades exigíveis a um chefe de Estado: capacidade de comunicação, mentalidade forte, personalidade vincada, sentido diplomático apurado e provas dadas, de modo irrefutável, no mundo político. Contudo, a perspectiva de uma vitória do PSD nas próximas legislativas (em 2009) é uma imagem um pouco assustadora. Cabe à esquerda e ao povo português, na sua imensa sabedoria*, não deixar que a direita venha reger o país ocupando todos os principais cargos de Estado.
Sócrates, toma lá a cicutaDeve haver várias leituras para o sucedido com as candidaturas made in Largo do Rato, suponho. Contudo, e não sendo eu analista político - não passo de um guitarrista talentoso, cheio de gajas por todo o lado, de fama praticamente internacional -, limitar-me-ei a escrever sobre aquilo que mais me saltou à vista. Parece-me que Soares foi, sem dúvida, um erro de casting (como se diz na gíria política). José Sócrates foi inábil a lidar com a situação - tudo bem que o velhote foi teimoso. Mas havia mesmo necessidade de deixar que ele se atirasse de cabeça à humilhação? Sócrates não fica bem na fotografia (também se diz muito esta expressão na gíria dos comentadores políticos). Mais que não seja, por ter deixado que uma figura ímpar da história política do século XX português saia do circuito pela porta pequena, após pesada derrota que roçou a humilhação - só não falo em humilhação porque alguém que tem um currículo como o de Soares é praticamente intocável, ainda mais aos 81 anos. Pode ser uma visão condescendente das coisas, mas prefiro lembrar-me do Soares vigoroso que deu a volta a uma situação aparentemente irreversível, contra Freitas do Amaral.
Alegre quase felizJá a situação de Manuel Alegre é qualquer coisa difícil de explicar. De (pré-)candidato dos socialistas passou a enteado do PS. Não se ficou: sentindo-se traído e acossado, traiu de volta e esfaqueou com mais força que os seus camaradas. De forma organizada e reunindo apoios de relevo, sobretudo do campo das artes, Alegre granjeou simpatias, dividiu o eleitorado socialista (com vantagem para Cavaco, digo eu), pescou votos na esquerda profunda e terminou em segundo lugar com uma votação de peso - mais de 20% sem apoio partidário, quase obrigando Cavaco a uma segunda volta. Embora o feito - a tal segunda volta - tivesse tido o seu quê de notável, o certo é que saiu mais barato ao erário público a resolução da situação às primeiras (abençoados 0,59%). Até porque Alegre tem boa vontade, boa dicção e sabe escrever. Pode mesmo ser bom como tribuno de referência num parlamento cronicamente adormecido. Mas não consigo imaginá-lo como primeira figura de Estado. Fica, no entanto, a questão: deveria o PS ter apoiado Alegre? A resposta pode não ser fácil. Contudo, e voltando a Soares, a solução adoptada não foi seguramente a mais apropriada. Aliás, os resultados falam por si.
O puzzle da esquerdaFalta-nos a restante esquerda, a eterna esquerda. Como diria Jorge Palma, "em vez de ficarem unidos / dividiram-se em mil partidos / lá no fundo, todos queriam ser ditadores". É uma análise redutora, é certo. Existe na esquerda portuguesa uma necessidade de afirmação (de sobrevivência?) que obriga a que os diversos partidos "marquem presença" ou, numa hipótese mais ligeira, "prestem apoio a" de forma explícita, inequívoca e que dê direito a louros no dia do juízo final. É uma política legítima. Mas não sei se é uma orientação inteligente. Não vejo o que possa ter ganho, por exemplo, Francisco Louçã ao expor-se a um combate em que o objectivo do Bloco de Esquerda passou tão somente por cimentar a sua posição. Não me parece que uma eleição presidencial seja um sufrágio adequado a tais estratégias - as pessoas não votam nos partidos, mas antes nas pessoas (de outra forma, como se explicaria a votação em Soares, apoiado por um partido que há meses atrás conseguiu 45% dos votos dos portugueses?). Louçã foi à fogueira e queimou-se, tendo obtido uma menor votação absoluta. Não é grave, mas é desperdício. Uma esquerda unida em torno de um candidato forte e unânime seria sem dúvida mais proveitoso. Situação a repensar. O que digo para Louçã vale para Jerónimo de Sousa, embora este tenha conseguido uma votação absoluta superior à da CDU nas últimas legislativas. Penso que não me estou a esquecer de ninguém... hum... ora deixa ver... ah, espera, espera, espera... o senhor Garcia Pereira. Figura assídua das campanhas eleitorais, Garcia Pereira prima por animar tempos de antena com teorias revolucionárias e reunir pequenos aglomerados de gente, do Jardim Constantino - entre uma bisca lambida e uma mãozinha de sueca - aos bairros degradados e ruas esquivas do Intendente. Não há nada que Garcia Pereira mais aprecie do que uma valente indiferença nacional à sua teimosia em ir a votos. Ou, em última análise, à sua obstinada existência política.
ConclusãoResta-me acrescentar que o resultado desta eleição é, de um modo geral, justo e, mais ainda, justificado. Ao vencedor, as felicitações e votos de um bom mandato - reservo-me o direito de exigir, ao longo da sua estadia em Belém. Aos vencidos (todos os outros candidatos), apenas um conselho: que vos tenha servido de lição. Aos eleitores, os meus parabéns porque, como disse o ministro Correia de Campos, "compareceram de forma não ausente" ao acto eleitoral. Isto é notável - a frase, não o acto do eleitorado.
*sabedoria do povo português - 3 porções de ignorância, 2 de aventais, isqueiros e canetas, 2 de "acho que é o que toda a gente vai votar", 1 de intuição, 1 de improviso, 1 de indecisão e 1 de engano a fazer a cruzinha.