Ida ao cinema
Quando saio com miúdas curto bué fazer cenas românticas, do tipo ir ao cinema. A maior parte das vezes, é chato, porque, como toda a gente sabe, as miúdas só gostam é de ver filmes de gaja em que o casalinho de namorados casa no fim ou a criancinha de 6 anos morre com leucemia ou que metam violência doméstica e promessas de amor para todo o sempre. Não interessa o tema nem o enredo, o que conta mesmo é que dê para chorar no fim. Eu raramente tenho vontade de chorar com estas cenas - só chorei nas Lendas de Paixão, mas isso é porque ela se suicida e faz-me pena quando uma miúda assim gira e querida rebenta com a cabeça daquela maneira depois de cortar o cabelo.
Agora, uma pessoa, mesmo uma pessoa como eu, para conseguir tirar prazer de ir ao cinema com as miúdas, tem que usar a esperteza que tem. Já se sabe que na parte dos trailers mete-se a mão por cima do ombro; durante o genérico inicial diz-se qualquer palermice engraçada ao ouvido e, durante a primeira meia-hora de filme - que é quando a história ainda não tem interesse nenhum, do tipo a criancinha que depois vai sofrer a bom sofrer nos últimos três quartos de hora ainda vive uma infância feliz e desinteressante, repleta de elementos tipicamente americanos como a Playstation ou a manteiga de amendoim -, dizia eu que, durante a primeira meia-hora de filme, aquilo é um festival de apalpadelas num cinema perto de si. Depois as miúdas dizem sshht, pára quieto, deixa-me ver o filme, mas a melhor parte já está feita, para além de que existem sempre os "extras" depois do filme acabar, if you know what I mean.
Mas também existem outras compensações, para além do pagamento físico avulso, numa fila recôndita do Quarteto: negociando bem, dá para escolhermos um filme em cada 5 que se vai ver. Eu, pelo menos, é assim que estabeleço a minha plataforma de entendimento. Portanto, já sabem: ao fim de 4 xaropadas com Richardes Geres, Susanes Sarandones, Tomes Cruises e Russeis Crowes, vão levar com uma sessão de terror sangrento. Mas daqueles com violência e esfrangalhamento da pessoa humana, para além do suspense contínuo e da certeza de que a coisa vai acabar mal vir logo incluída no preço do bilhete. Nah, não estamos aqui a falar do chamado "terror psicológico" e muito menos dessa mariquice achinesada que é o "j-horror". Nem tão pouco daqueles intermédios, tipo Poltergeist ou mesmo O Exorcista - isso metia medo há vinte anos atrás. Estas que descrevi são coisinhas de adolescentes.
Eu gosto de coisas com pés e cabeça, tipo o Terror na Autoestrada, A Noite dos Mortos Vivos ou até mesmo O Assassino da Motosserra. Isso para mim, sim, é bom cinema. A Sétima Arte no seu esplendor - olha, o Peter Jackson, por exemplo, antes de fazer filmes para crianças, era mestre nessas coboiadas. Mas um gajo anda a fazer filmes para assustar que não metam sangue? Isso cabe na cabeça de alguém? Se é para assustar, não há que ter medo de ferir susceptibilidades: abrem-se os corpos em dois, arrancam-se as cabeças, comem-se os órgãos vitais e os anexos, esventram-se mulheres grávidas e esquartejam-se pessoas portadoras de deficiência, se for preciso. Há que ser arrojado e não ter vergonha de horrorizar. Outra coisa de que gosto num bom filme de terror é das bandas sonoras originais. Mas daquelas que são feitas de propósito para os filmes. E nisso ninguém bate o velho Carpenter, compositor incompreendido que é capaz de passar um filme inteiro a carregar em três notas dissonantes de dez em dez minutos, só para dar um tom mais pesado e modorrento à coisa. Ou então não sabe música. Mas o que é certo é que a cena resulta e assusta que se farta.
Recentemente, fiz uma destas chamadas "noites românticas" e adorei. Fui com uma miúda bem fixe, nada inibida e com uma curiosidade tremenda, pelo que a coisa dificilmente poderia ter corrido melhor. Inspirei-me tanto que até escrevi uma música dedicada a essa ida ao cinema. Chama-se
Ida ao Cinema e vai assim numa onda entre o gótico e o fado, mas um fado triste, arrastado, a um tempo melancólico e peculiarmente rancoroso. Com um desejo de vingança contido, como se fosse Outono e estivesse há três dias para chover e não chovesse. De maneira a assustar só com a insinuação, mesmo no limite entre a expressão maléfica no olhar que transparece e a ameaça que fica por fazer.
Ida ao CinemaFomos no domingo ao Quarteto
p'ra ver filmes com terror
vestimo-nos os dois de preto
porque achámos que era melhor
assim a malta vai de acordo
com o argumento original
que deve ter sido escrito por um gordo
com uma grave disfunção hormonal
porque aquilo é só doenças
aquilo é só doenças
é a loucura total
porque aquilo é só desgraças
aquilo é só desgraças
do princípio até ao final
(refrão)
Mas eu
eu não tenho medo
destas bestas que fazem sangue e causam sofrimento
Porque eu
lá no fundo em segredo
sou apenas mais um ser horroroso em desenvolvimento
tu fingias que estavas à vontade
até àquela parte em que os olhos eram arrancados
mas para dizer a verdade
eu percebi que os teus dedos estavam suados
estavas toda encolhidinha
enroscada no meu braço direito
quando a miúda, coitadinha,
foi molestada no peito
com chicotadas diabólicas
chicotadas diabólicas
é a sangria total
com açoites violentos
açoites violentos
de maldade original
(refrão)
Mas eu
eu não tenho medo
destas bestas que fazem sangue e causam sofrimento
Porque eu
lá no fundo em segredo
sou apenas mais um ser horroroso em desenvolvimento
(bridge)
engasgaste-te com as pipocas
fiz-te respiração boca-a-bocas
cuspiste-te toda e voltaste a ti
ainda... a soluçar...